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Primeiro um esclarecimento. Nada em especial me liga a
África. Diferentemente de muitas pessoas da minha geração, não tenho recordações, próprias ou partilhadas na memória familiar, que se liguem ao grande continente negro. Não sinto, por isso, o, tantas vezes afirmado, apelo de África, da sua cor, da sua luz, do cheiro da terra. Não sou, também, muito permeável às, tão em voga, perspectivas de vida alicerçadas em filosofias ancestrais vindas dos quatro cantos do mundo. Excepção feita à India (para visitar o
Taj Mahal e por gostar muito da música daí oriunda), não tenho tendência para destinos ditos "não ocidentais". Ressalvo uma natural curiosidade por outras terras, outras gentes, outras culturas; um respeito intangível pelo outro, pelo diferente (que sinto sempre e necessariamente tão igual) e uma admiração profunda por quem se orgulha das suas raízes e por quem as mistura despudoradamente com novas realidades.
Faço esta introdução apenas para que se perceba o estado de espírito com que ontem me dirigi à Casa da Música para assistir ao Concerto dos
Acoustic Africa. Com muita vontade de ouvir novos sons. Sem qualquer juízo pré-construído. É certo que o
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facto de se incluir na categoria camaleónica de "
Worl Music", de cujos espécimes, em regra, muito gosto, augurava um espectáculo agradável. Mas não imaginava o que se iria seguir. Os coloridos painéis que nos miravam do fundo do palco não foram aviso suficiente.
Do grupo, nascido do e para o álbum
"Acoustic Africa", destacavam-se três dos seus elementos: o veterano
Vusi Mahlasela da África do Sul, o guitarrista virtuoso
Habib Koilé do Mali e a jovem
Dobet Gnahoré da Costa do Marfim. A eles juntavam-se outros sete músicos e muitos e desconhecidos instrumentos. Em conjunto ofereceram-nos sons belíssimos. Num espectáculo que se afirmava acústico, tudo se mostrou genuíno, honesto, sem artifícios.
As
vozes quentes e profundas sobressaíam da envolvência musical, e encheram-me a alma. Sobretudo
a voz s
oberba de Dobet Gnahoré. E a de
Mahlasela –
não sei de onde vinha, mas a sua voz parecia arrancada do mais fundo do seu ser, levando-nos a paragens distantes e maravilhosas. E tudo, sem que percebesse nenhuma das palavras cantadas (salvo
Habibe e um
je t`aime incrustado numa das melodias)
Mahlasela, o anafado e simpático músico, protagonizou vários dos momentos mais tocantes e divertidos da noite. Surpreendeu-nos quando surgiu em palco com uma cadeira, companheira de uma dança vibrante com que nos brindou.
A dança foi, aliás, uma das rainhas na noite de ontem.
Dobet Gnahoré requebrou-se admiravelmente ao ritmo frenético de muitas músicas. O grupo todo dançou.
E o público foi dançando. Primeiro, nas suas cadeiras envergonhadamente. Finalmente, (infelizmente, muito no final), venceu (vencemos?!) as amarras da vergonha que o prendia às cadeiras e juntou-se num movimento geral de alegria.
E com esta extraordinária
joie de vivre não deixaram de transmitir
mensagens muito sérias.
Um lamento –Dobet Gnahoré desabafou: "
I`m tired of politics. I`m tired of politics in my country".
Um aviso – "
Democracy is a fragile thing", lembrou Mahlasela, ou Pretoria como lhe chamavam amistosamente os companheiros.
Uma homenagem – às mulheres, às mulheres africanas, às mulheres africanas sofredoras.
E uma ode ao amor, ao amor puro, aquele que não se olvida mesmo quando a vida impõe uma separação, como explicou Habib Koité (em inglês, pois não sabia falar "
portuguesô").
Guardo ainda na memória a
voz visceral de Mahlasela: "
Sing Africa. Sing it loud Africa".
And it sang. And they sang. E nós dançámos. Ontem, de facto, houve música na casa.
And outside, and outside,
and outside...