segunda-feira, outubro 30, 2006

ZOOMático

Olhar (a) Verde-água

domingo, outubro 29, 2006

Rádio no ar (2)


Para saborear os últimos pedacinhos de fim-de-semana, o "Planeta3" de Raquel Bulha providencia uma banda sonora muito interessante. Na Antena 3, aos domingos, entre as 22h as 23h, percorrem-se os caminhos da música do mundo. Somos transportados para paisagens distantes antes de regressar para o reinicio de mais uma semana de trabalho.

PS – Atenção à estreia do novo programa dos Gato Fedorento, na RTP 1, às 21h30, "Diz que é uma espécie de magazine"

sábado, outubro 28, 2006

Post Scriptum

Deparando-me com o já lido "Viver para contá-la", no cantinho de uma mesa, em posição periclitante e a pedir para ser arrumado na estante à beira dos seus semelhantes, decidi retomar aqui os fios das impressões de leituras, que deixei uns posts atrás.
A auto-Biografia de Gabriel García Márquez abre com um mote lapidar que me convenceu, de imediato, à leitura: "A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para contá-la.". Rendi-me à verdade da afirmação – quanto do que lembramos não é fruto da nossa imaginação ao rememorar o pretérito! – e acompanhei o escritor colombiano no desfiar das memórias da primeira metade da sua vida.
O livro principia com uma viagem de Barranquilla para Arataca, de Gabito e sua mãe, com o fito de concluir o negócio da venda da casa da família, mas a história começa muito tempo antes – antes de Gabo nascer, antes de seus pais se conhecerem, antes da revoada da companhia bananeira – em Arataca: "um lugar bom para viver, onde toda a gente se conhecia, na margem de um rio de águas transparentes que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos". (Op. Cit., p. 11). E reconheci logo Macondo de "Cem anos de Solidão" que o autor descreve exactamente com as mesmas palavras (Segunda frase do livro, na minha edição das Publicações Europa-America na p. 9), numa altura em que "o mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome, e para mencioná-las era preciso apontar com o dedo" (idem).
Ora, García Márquez, nesta viagem ao princípio do seu mundo, e que o marcaria indelevelmente, recolhe nostalgias "na casa fatasmal" que, aliás, acaba por não ser vendida ("A casa não se vende – disse [ a mãe de Gabo] – Façamos de conta que aqui nascemos e aqui morremos todos" – "Viver para contá-la", p. 44). Recua e começa a apontar fragmentos da sua (pré-)história . Descobrem-se as sementes de "Cem anos de Solidão" - na família do prémio Nobel de 1982 encontramos a família dos Buendía, em alguns episódios revela-se a inspiração do enredo do famoso livro (Até a personagem Rebeca que, na leitura de "Cem anos de Solidão", tanto me surpreendera por viver sem comer, alimentando-se de terra húmida do jardim e pedaços de cal das paredes, tem o seu original em Margot!)
Percebemos que a vida repleta de percalços, preenchida de aventuras foi um rico manancial para a obra do escritor. Quase que a cada retalho da sua vida está associado um poema, um conto, um romance (fiquei, por isso, com vontade de alargar o meu reduzido conhecimento da obra do escritor).
Esta autobiografia cumpre mais do que a sua (aparente) primacial função - como, aliás, todas as (auto)biografias de pessoas de valor. A leitura de "Viver para contá-la" proporciona uma tripla descoberta: a da vida de Gabo, a da obra de García Márquez, e a da história do início do século XX da Colômbia. Acompanhamos de perto e pela lente comprometida do escritor vários momentos da vida política conturbada do seu país.
Estava no local certo às horas sobressaltadas, pois encontrava-se em Bogotá para cursar Direito. Aí permaneceu, trocando, no entanto, a Faculdade (com o curso apenas iniciado) por uma vida atribulada nas efervescentes redacções de jornais. É interessante perceber as dificuldades que sentiu para seguir este percurso, sobretudo por ter de defraudar as expectativas dos pais que lhe desejavam um diploma académico e suspeitavam de uma minguada existência dedicada à escrita jornalística e literária. Curiosa é também a sua atribulada vida escolar já que traduz a assunção como verdadeira da afirmação de Bernard Shaw "Desde muito pequeno tive de interromper a minha educação para ir à escola".
O tom jubiloso com que desfia as memórias, o despudor com que revela as fraquezas (os erros ortográficos que diz cometer com grande frequência), a variedade e jocosidade dos episódios que viveu (por exemplo, aquele em que, perante a necessidade de eliminar de um livro seu as palavras "masturbação" e "presevativo", sob pena de a publicação ser rejeitada, ele negoceia com os censores a eliminação de uma só, deixando-lhes a escolha da suprimida; ou o episódio dos dois amigos que se envolvem num duelo, em que ambos ficam feridos, e acabam por morrer de pena um pelo outro), a multiplicidade de pessoas com que conviveu e nos apresenta (muitas delas com um papel de relevo na vida pública da Colômbia), ... tudo torna mais aprazível a leitura das quase 600 páginas de parte da vida do escritor colombiano. No fim, apetece concluir que se Márquez, como diz, viveu para contar, agora conta para (re)viver!

Natércia Freire


Areia

Areia pisada,
areia dorida,
areia beijada,
areia batida,
areia doirada,
areia estendida,
areia rolada,
rolada na vida.

Frescura abraçada
ao mar que se vai,
e os braços crispados
pregados num ai.
E a areia rolada
nos olhos profundos,
e as matas de sombra
ao fundo dos mundos…

E o paço de pedra
Erguido no espaço
e as capelas tristes
que perco e abraço…

E o sonho do vento,
que gela e que deixa,
e a voz que ergo e calo
e é vida e é queixa…
(…)

(in Horizonte Fechado, 1942)

sexta-feira, outubro 27, 2006

Do meu e-mail (I)

A crise toca a todos ou a crise quando nasce é mesmo democrática!

Early Night Posts (9)

De stijl clock - Gerrit Rietveld

"Procede deste modo, caro Lucílio: reclama o direito de dispores de ti, concentra e aproveita todo o tempo que até agora te era roubado, te era substraído, que te fugia das mãos. Convence-te de que as coisas são tal como as descrevo: uma parte do tempo é-nos tomada, outra vai-se sem darmos por isso, outra deixamo-la escapar. Mas o pior de tudo é o tempo desperdiçado por negligência. (...)
Nada nos pertence, Lucílio, só o tempo é mesmo nosso. (...) É tão grande a insensatez dos homens que aceitam prestar contas de tudo quanto - mau grado o seu valor mínimo, ou nulo, e pelo menos certamente recuperável - lhes é emprestado, mas ninguém se julga na obrigação de justificar o tempo que recebeu, apesar de este ser o único bem que, por maior que seja a nossa gratidão, nunca podemos restituir."
Lúcio Aneu Séneca, "Cartas a Lucílio", Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 2004.

quinta-feira, outubro 26, 2006

Dupla homenagem merecida


Di Cavalcanti, Mulher pensativa, 1966.
Homenagem a Di Cavalcanti, pintor e caricaturista brasileiro, no dia em que se completam 30 anos sobre a sua morte.
Homenagem às mulheres das nossas vidas: desde as mais óbvias e umbilicais - as mães -, às outras cujo sentimento dificilmente conseguimos descrever.

quarta-feira, outubro 25, 2006

ZOOMático

verbum pro verbo

Exangue


Pieter Bruegel, «O Triunfo da Morte», c. 1562, Museu do Prado, Madrid.

Estou exausto.
O sangue não corre.
A lividez exangue assoma-me o rosto.
Já vejo Fausto.
A alma em farrapo escorre.
E o corpo mostra já o lençol posto.
Vivo em sobressalto
Pela chegada do incerto
Que em trilhos de tempo espero.
Vivo no alto
De um casco aberto
Em dias que nunca, mas nunca modero.
Deito-me cansado
De esperanças douradas
E de risos de criança que estridentes ecoam.
Acordo perturbado
Por múltiplas moradas
Que, pela aurora manhã, da janela voam.
Exangue, esvai-se em vermelho
O que vês ao espelho.

F.L.

Filosofia da treta (II)

O medo de falhar é co-natural ao homem. Verdade tão insofismável quanto mecanismo de defesa sem o qual entraríamos em depressão pós-moderna major. Contudo, se esse medo, mais do que bloqueador, nos impele a avançar, mas a deixarmos em um «escrínio de irredutibilidade» sentimentos que não compartilhamos, então o Homem desinveste de si mesmo e concentra um aparente investimento em objectos situados fora de si.
Sendo exacto que só descentrando-se o «ser» se realiza em plenitude, também é certo que um capital de energia fora do «eu» é atingível somente quando existem espaços físicos, mentais e relacionais de solidão. De «solidão criativa» falo neste domínio. Nunca aquela que nos lança numa «autofagia sentimentalóide» em que de observador passamos a observado, mas a um right to be alone, tão caro ao mundo anglo-saxónico, que nos transpõe para a consciência do que temos a oferecer.
De facto, as «teorias de análise económicas» hoje servidas como inovações incontroversas, nada mais são que uma reconstrução sujeita a cosmética de lógicas utilitaristas e de ensinamentos psicanalíticos freudianos e tributários de Jung.
A «solidão criativa» é, por decorrência, condição sine qua non do «estar-com-o-outro criativo» que ultrapasse um «estar» circunstante, asséptico e sem polissemia. «Estar» deste último modo não é verdadeiramente «estar», mas «existir». E «existir» é somente uma dimensão biológica, quando muito com laivos mascarados de racionalidade e emoção.

Alma

A alma prostra-se sob o manto triste e soturno. As veias secam à passagem da tua lembrança. Os finos cabelos que me restam no alto de uma cabeça que outrora supus altiva e arrumada desistem de combater o pente em que os queres encerrar e enfileirar em uma beleza que contrasta com a fealdade do que me cerca. Apetece-me hoje sorver dos teus lábios as palavras que em vão me dirigiste quando, em momentos áureos, me avisavas temerosa do abismo para que caminhava. Agora que te observo deste gélido leito em que me encontro, peço-te que contenhas a lágrima que claudica o sopro de gemido que trazes no teu peito. Não por tua causa, que o egoísmo sempre me caracterizou. Mas por mim, que não posso neste momento levantar-te e enxugar-te o rosto. Não me concedas a derradeira humilhação de te ver chorar e de não te ser útil, ou melhor, de não me ser útil a mim mesmo por teu intermédio. Sempre fui assim. Não é a visão da morte que o alterará. A fria pedra tumular que sobre o fato preto e os sapatos novos e engraxados já vou sentindo selará apenas uma parte de mim. A velhacaria permanecerá. Sobre ela se contarão histórias e formarão mitos. Dirás que eu era uma alma torturada. E se eu te disser que nem alma tinha?

Palco das letras - «Biblioteca Infernal», DireitoàCena

Adaptando um original de Zoran Zivkovic, o T&L em peso esteve ontem numa representação que anunciara – «Biblioteca Infernal» –, levada a efeito pelo «DireitoàCena», Grupo de Teatro da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.
A singularidade e beleza únicas do espaço que serviu de cenário – a Biblioteca da Faculdade – foram solo fecundo para um texto que nos interroga de modo profundo. A leitura, rectior, a ausência dela, se entendida como um crime capaz de conduzir um ser humano à condenação infernal, aplicada em «medida de coacção» exactamente proporcional à inexistência de hábitos de leitura do arguido, de imediato condenado é, de per se, uma ideia genial. Associar-lhe a reflexão de que «todas as épocas têm o seu inferno» e rejeitar clichés sobre esse local demoníaco, fazendo-nos ponderar se as nossas vidas, tal como as vivemos (ou não vivemos), são já, elas próprias, um inferno, encerra uma mensagem que não pode senão deixar-nos inquietos.
Se a isto juntarmos poesia e prosa dos mais representativos Autores nacionais e estrangeiros, desde «As Farpas» de Ortigão e Eça, à «Biblioteca» de Umberto Eco, passando pelo inevitável Pessoa em «Ai que prazer» e as deslumbrantes «Queixas e imprecações de um condenado à morte», de Ary dos Santos, ditos por actores amadores, no sentido de verdadeiros amantes da arte de representar e de dizer literatura, então a sala de Penal encheu-se, por entre exasperadas perspectivas ético-retributivas iniciais, de um krausismo regenerador (aqui estavam eles, respondendo às «Farpas»…).
O Grupo de Teatro que já nos habituou a um magnífico brinde de Kafkfa em «O Processo» e a uma «Medeia» de assinalável nível é uma certeza. E não o digo quase a domino, pelos laços que me ligam a quase todos os actores. Quem, no final da adaptação de Zivkovic, de forma tão comovente, passa a mensagem de que os julgadores são, por rectas contas, seres iguais ao condenado, também sentenciados a uma eternidade assustadora, faz do teatro uma forma de expressão de sentimentos que doem, numa dor gostosa.
Tanto que cheguei a casa e não pude conter a escrita numa catarse de algo que trouxe (ou que já se encontrava) dentro de mim, ao som pungente da Suite n.º 3, em Dó maior, BWV 1068, de Johann Sebastian Bach.

terça-feira, outubro 24, 2006

Ecos de um fim-de-semana desportivo

Não, não vou falar do Sporting-Porto.
Também não vou deter-me no embate futebolístico entre o Real Madrid e o Barcelona, em que o primeiro saiu vitorioso.
Nem sequer pretendo falar da vitória de Federer no Master Series de Madrid que permitiu ao suiço alcançar a marca record de 10 torneios em 3 anos consecutivos.
Quero apenas assinalar, neste blog, a despedida de um símbolo do desporto automóvel. No passado Domingo, Schumacher correu, no Brasil, o seu último grande prémio de Fórmula 1.

Comecei por segui-lo com atenção ainda ele estava na Benetton. Nessa altura era sua fã.
Depois, por vários actos aparentemente menos desportivos (como a reacção de um contentamento desabrido pela vitória em Monza, no grande prémio em que Ayrton perecera – ao que parece não saberia da gravidade das consequências do acidente) e com a passagem para a Ferrari (tenho por princípio, no desporto nunca torcer por vermelhos – com excepção do Manchester United do Cristiano Ronaldo e do Milão, quando lá jogava o grande defesa Maldini), passei a torcer pelos seus rivais, pelo Jacques Villeneuve, pelo Mikka Hakkinen e mais recentemente pelo Alonso.
Não deixei de admirar a sua condução, por vezes demasiado aguerrida e atropelando as regras de forma discutível, e sobretudo os seus inúmeros feitos com que foi compondo a sua carreira (a hegemonia traduzida em títulos entre 2000 e 2004), nomeadamente o de quebrar o jejum de 18 anos da marca italiana (também sou particularmente sensível ao retomar da senda de vitórias por parte de quem delas está afastado muito tempo :-)).
Gostei em particular da forma como terminou a última corrida da sua recheada carreira, fazendo jus ao seu longo percurso – ultrapassando a adversidade de um pneu rebentado que o lançou para o último lugar, conseguiu atingir o 4.º. É de campeão!

segunda-feira, outubro 23, 2006

Dia de Festa: Rocky, a Amiga

Toquem as trompetas! Soem os badalos dos sinos das aldeias, vilas e cidades do nosso Portugal! Abram-se as garrafas de Moet et Chandon e coloque-se a toalha de linho sobre a mesa!
O T&L rejubila!
Após aturadas e complexíssimas negociações, envolvendo capacetes azuis (!!), o nosso blog conta com mais um elemento, neste caso, «uma elementa». Diríamos que este é verdadeiramente o Fogo. Pela sua perspicácia, Amizade incondicional, crítica atenta e construtiva, espírito inquieto e, acima de tudo, pela intensidade e perfeição em tudo o que faz!
Assim é a nossa Rocky, a partir de hoje membro de pleno direito desta empresa em que nós (rtp e filipelamas) nos lançámos nos idos de Julho.
O T&L tem muito a ganhar contigo, Amiga Rocky!
Sê muito bem-vinda a esta que é, a partir de agora, também a tua casa!

Rtp
Filipelamas

domingo, outubro 22, 2006

Ecos de um discurso

Sentada na Sala Suggia da Casa da Música, na passada Sexta-feira, ouvindo a Orquestra Nacional do Porto, revivi, em acordes musicais, a verdade das palavras que ouvira, nessa mesma tarde, da voz de Paul Auster. Na cerimónia de entrega dos Prémios Príncipe de Astúrias 2006, o escritor americano agraciado com o galardão relativo às letras, aproveitou o ensejo para, no seu discurso, falar da arte.
Começou por acusá-la de inutilidade, para logo afirmar que é precisamente essa característica que lhe comunica o seu valor. É aliás, segundo ele, o acto de criação artística que nos distingue de todas as outras criaturas e nos define como seres humanos.
E, pronunciando-se sobre a literatura de que é tão bom cultor, confessava que "Every novel is an equal collaboration between the writer and the reader, and it is the only place in the world where two strangers can meet on terms of absolute intimacy", acrescentando, feliz que "I have spent my life in conversations with people I have never seen, with people I will never know, and I hope to continue until the day I stop breathing".
Também na Casa da Música, através de um programa composto pela Rapsódia sobre um tema de Paganini de Rachmaninov e pela Sinfonia n.º 8 de Shostakovich, durante quase duas horas, decorreram cruzados diálogos mudos. Cada uma das obras transmitiu uma mensagem particular a cada um dos espectadores. Cada um dos espectadores retirou do enunciado musical um significado diferente. Pude constatá-lo ao intervalo e no final com magníficos sentidos revelados e que em muito se distanciavam dos que, para mim, fora construíndo.
Em comum, a congratulação à ONP pelos bons momentos que nos vai proporcionando e a Nelson Goerner, pelo expressivo diálogo travado com o piano, na execução da obra de Rachmaninov.

E fico por aqui, porque estou já em estágio para um outro espectáculo – que, espero, seja, uma exibição de arte - marcado para o fim da tarde. Espero que, neste caso, do diálogo resulte uma agradável mensagem para os meus ouvidos, insusceptível de mais do que um sentido.

Karol ou o Papa corcovado

A entrega do Anel do Pescador a Karol Wojtila, no dia 22 de Outubro de 1978, marca o início de um dos pontificados (o 265.º) mais relevantes da História. Não falarei do espírito ecuménico, das desculpas formais por acções e omissões da Igreja Católica (Inquisição e Holocausto, respectivamente), mas destaco sim o intenso trabalho de preparação para uma certa modernidade de uma das mais antigas, pesadas e viciadas instituições do mundo. Não uma modernidade em que a Igreja vendeu ou entrou em saldos quanto ao seu património ideológico. Muito pelo contrário: João Paulo II (Ratzinger?) foi dos pontífices mais intransigentes em questões de fé e de recusa à abertura que muitos movimentos católicos reformistas reclamam.
Contudo, Karol conseguiu ser o Papa das multidões, em grande parte devido ao seu olhar e sorriso enternecedores que desarmavam qualquer um. Mantém-se-me na lembrança a visita a Cuba, em que El Comandante se referia a Su Santidad com um misto de reverência e de quase vergonha.
A aceitação da doença e a mensagem que através de um ser cuja voz mal se ouvia e percebia foi, para mim, o legado mais sublime de João Paulo II: os mais indefesos devem ter lugar nas sociedades modernas. Esta perspectiva interpela-nos e incomoda-nos, porquanto somos bombardeados com a cultura do belo, do rápido, do sucesso. O Papa corcovado foi a desmistificação de tudo isso.
Para quem, como eu e tantos outros, se habituaram a crescer com Karol, ele era quase uma visita de casa, um avô de rosto sereno e que inspira confiança. Um regaço em que tantas vezes desejei repousar.

sábado, outubro 21, 2006

Ecumenismo

Assinala-se hoje o Dia do Ecumenismo. Encontrar pontes de diálogo e aspectos semelhantes entre religiões, mundividências, civilizações e políticas é hoje tarefa urgente e da qual depende a nossa sobrevivência como espécie. Ser ecuménico não é mostrarmo-nos preocupados falsamente com o que é díspar, mas procurar conhecer o que nos separa e o que nos aproxima. Só assim os povos podem respeitar-se. A História dá-nos grandes lições quanto a esta matéria e ensina-nos também que ninguém pode arvorar-se em dono do ecumenismo. Igreja Católica incluída, é certo. Como é ainda exacto que ela, mais do que outras e porventura com intuitos políticos, mais a tem pregado. Mas uma pregação sem frutos concretos é como uma fé sem obras. Aqui fica o convite à aceitação da diferença.

Greve

Despertei. As primeiras frias e grossas gotas de orvalho penetraram-me na pele como lâminas assanhadas. Os poros pelos quais respiro contraem-se ao invés de se distenderem de modo a permitir que a líquida seiva atinja a profundeza do meu ser. Reajo à contracção e ordeno aos meus grãos que se afastem. Sufoco. O orvalho transforma-se em bátega que cai sem dó sobre a planície. O velho carvalho em vão me protege. Procuro raízes antigas às quais me agarre, mas nada mais consigo que um lento chorar. Sim, a terra também chora! E não é a água que cai que se confunde com o salgado sabor de uma lágrima carpida pelo elemento mais fundamental da vida. Desisto de dar ordens aos meus grãos. Declaro: a terra fez greve ao entrelaçar com a chuva.

Portugal


Adamastor, Palace Hotel de Buçaco, Jorge Colaço, 1907, Fábrica de Sacavém.

Portugal adiado
Em sonho vivido,
Segue em momentos
Num quadro partido.
Quadro de passado
Glorioso com fado,
Presente d’enfado
De gente dormente,
Inerte em silêncio
Desfia o rosário,
Em vão esperando
Um santo inocente.
Inocência que tens,
País secular,
Não peças a quem
Não pediu para andar.

F.L.

sexta-feira, outubro 20, 2006

Reflexos

The toilet of Venus, Diego Vélasquez, 1647-1651, National Gallery, Londres.

O rosto reflectido no chão da sala
Transforma o limite em mar imenso.
Os traços da face de nevoeiro cerrado
Mantêm à tona a verticalidade da gente.

Nessa outra dimensão por baixo do chão
Assumiste os teus defeitos e qualidades,
Deixaste-te ver em pele crua e azeda,
Mas o que vi foi único porque verdadeiro.

Chão de granito espelhado,
Espelho reflectido de sentimentos,
Pudera eu ter um chão como este
E nunca na vida me enganaria!

Porém, ver alguém a contra-luz
É realidade irreal agridoce,
Mais suportável que a verdade.
E na verdade quem está interessado,
Afora o tolo que anda enganado?

F.L.

Porto-gente

O sonho do infante (o infante D. Henrique no promontório de Sagres), pormenor, José Malhoa, 1907-1908, Museu Militar, Lisboa.

Alma enorme e generosa
De sentida pronúncia feita.
Gente honrada e valorosa
A quem a História não despeita.

Do arrumador em rua estreita
Ao industrual de dinheiro vestido,
Do Porto-gente há a suspeita
De ser pirâmide de cume invertido.

Odor a gente em cidade granítica
É melodia atonal em dor mítica!

F.L.
ZOOMático

Feixe de luz numa tarde outonal em terras do Douro

quinta-feira, outubro 19, 2006

Homenagem a um Blog amigo (II)


Num corredor do metro de Lisboa fui surpreendida por este esquisito ser azulejar. Será um mocho? Será uma coruja? Depenado é certamente...

terça-feira, outubro 17, 2006

ZOOMático


Pôr-do-sol (I)
Saudades do Verão

domingo, outubro 15, 2006

Pintado de Fresco (VI)

Aviso: Este é o 6.º capítulo de uma novela da vida moderna escrita a 4 mãos, entre mim e o filipelamas.

Amilcar enterrou no bolso roto das calças o post-it amarelo, depois de o revirar e dobrar em dois. Sem intenção de fazer de cupido, descobriu-lhe, de imediato, outras utilidades.
Encaixou-se no vão de uma porta, aconchegando-se ao granito gasto pelo seu corpo e que lhe servia de cama. Aqueles 20 euros eram uma grande ajuda. Mas ainda não dera a noite por terminada. Queria mais umas moedinhas e, se possível, umas notas inesperadas como aquela. Inquieto, beliscado pela sua dependência, manteve-se atento ao respirar da praça. Afagou a nota encolhida nas suas mãos sujas, secas e sulcadas. Emocionou-se com a perspectiva de ser útil pela primeira vez desde que vivia na rua. Sabia que segurava os fios que sustentavam os sonhos de gente limpa e bem-cheirosa. O sucesso daquelas pessoas mordia-o com violência. Lembrou-se de quando levava recados às clientes de sua mãe ...
Calou o vício que lhe gritava por dentro e esperou, embalado pelo barulho da música do restaurante vizinho.
A festa parecia animada. Muita música, um estrépito repetido de gargalhadas.
Apenas o vislumbre do passado, no beijo fugidio de há pouco, azulara o espírito de Margarida, criando uma surpreendente combinação com a sua indumentária. Esforçava-se com sacrifício por empurrar da memória o peso dos primeiros e únicos meses de casada. Como pudera enganar-se tanto? Ou a vida enganara-os a eles? Conhecera Rodrigo na Faculdade de Letras. Ambos estudantes. Ali se apaixonaram, ali cresceram num abraço de cumplicidades convertido solenemente em aliança. A perda do filho tão desejado, pouco tempo depois do casamento, tumultuou-lhes a existência. Enegreceu-lhes os desejos. Acinzentou-lhes os sonhos. Toldou-lhes o horizonte.
Rodrigo ruíra sob o peso da realidade. Perdera o emprego, entregara-se ao álcool e a outras substâncias. Recusara a sua mão amiga. Fora isso que jamais lhe perdoara. Não lhe permitira cumprir os votos tão ledamente assumidos. Para a saúde e para a doença, para a fortuna e para a desventura.
Nunca mais o vira desde que haviam assinado um montinho de papeis que mãos alheias lhe entregaram como sinal do fim do seu amor.
Onde estaria o Rodrigo? Perguntou-se novamente, silenciando o insulto. O arrependimento reprovava-lhe o epíteto de há pouco. Não, não era um estupor. Era um farrapo de vida.
Ela também se arrastara numa existência lusco-fuscada durante um par de meses. Fugira para Roma. Depois de um exílio de ano e meio, voltara amanhecida. Novinha como uma folha de papel reciclado. De vez em quando, ainda era atingida por estes aguaceiros de recordação. Eram frios, fortes, mas fugazes. Cada vez mais espaçados.
Para empurrar este que viera agora importuná-la, desenlaçou-se do doce abraço de Bernardo. Num acto temerário afoitou-se no karaoke. Percorreu o dossier de folhas plastificadas. A escolha era difícil. Optou pelo "Lado lunar" de Rui Veloso. "Não me mostres o teu lado feliz/ A luz do teu rosto quando sorris/ Faz-me crer que tudo em ti é risonho/ Como se viesses do fundo de um sonho"
Nem reparou no sucesso da sua actuação. Olhava com enlevo para o Bernardo e só via o seu sorriso luminoso.
Todos se uniram no refrão, que soou a hino de encerramento da festa.
As vozes líquidas espalharam-se pela noite que parecia imóvel. As janelas do Palácio ainda iluminadas. A praça adormecida. A vespa abandonada.
- Não te esqueças. Quando te quiseres desfazer desta preciosidade, diz. – estridentava Xana com os restos de baton fugidio
O barulho belisou Amilcar no seu sono. Primeiro só viu sombras. Aproximou-se e lá estava a vespa no meio do magote de pessoas e a seu lado a loira no vestido turquesa apertadinho como uma luva nova a estrear. Não teve dúvidas. Era ela a destinatária da mensagem.
- Toma lá! É para ti. E uma moedinha, faz favor. O gajo tem muita guita. O carro era uma bomba ... ele não tinha unhas para aquilo... Então, a moedinha?
- Pega lá e vai-te embora – despediu-o o Luís, com uma moeda de 50 cêntimos.
- Só isto pelo arranjinho?! – resmoneou Amilcar enquanto corria em perseguição de dois convidados da festa do palácio que lhe prometiam uma melhor colheita.
- Oh, Xana. Sempre a fazer estragos! – atirou-lhe Margarida.
- Oui, c`est moi. Deve ser o presidente da Vince ... Cruzei-me com ele há pouco. Deixou a porta do elevador fechar-se na minha cara. Nada cavalheiro...
Olhou para o post-it. Os últimos números haviam saído a custo com uma tinta desbotada.
- Uhm... o Dr. Gustavo cansou-se da Madalena?
- Aquela mulher cansa qualquer um – ripostou Luís.
As cabeças voltaram-se todas para ele.
- Não que o saiba por experiência própria... Diz-se ...
- Bem, isso tem de ser averiguado, noutra altura... que se faz tarde.
Por entre beijos e abraços o grupo foi-se despegando.
Na boleia até ao parque da Alfândega, Margarida ziguezagueou propositadamente por entre os trilhos do eléctrico. Bernardo enroscou-se mais, num abraço de segurança.
- Então, gostaste do passeio? – brincou Margarida, enquanto via a lua a bailar no soalho encerado do rio.
- Dentro do género. Uma espécie de desporto radical!
- Radical? Estás muito mal habituado, flor de estufa. - e pousou o olhar num barco rabelo que baloiçava exausto na outra margem do Douro.
- Flor de estufa, eu? Dá-me uma oportunidade. Deixa-me mostrar o meu lado lunar.
Sem esperar resposta enfiou-lhe uma pulseira verde no pulso. Leu Dj Good Vibes na discoteca Vogue. No dia seguinte.
- E é desta forma que pensas fazê-lo? ... uhm... bem, vou ter de descobrir roupa que combine com esta fluorescência!
Margarida arrancou com o sorriso de Bernardo estampado na retina.

Mário dormia um sono intermitente. As horas escorriam lentas.
O percurso pacificara-o. Também pudera. Quase galgara o passeio! O susto obrigara-o a acalmar. Ao entrar em casa, o silêncio e a escuridão terminaram a tarefa. Foi invadido por um torpor.
Deitou-se, evitando a censura do espelho.
O telemóvel, que jazia entre a "Criação do Mundo" e o cinzeiro, remexeu-se várias vezes. Afónico arquivou na sua memória mais uma chamada perdida.

sexta-feira, outubro 13, 2006

Teatro: "Biblioteca Infernal" - Biblioteca da FDUP

Grupo de Teatro da FDUP Direitoàcena.
O "cenário" da Biblioteca da FDUP Prof. Doutor Jorge Ribeiro de Faria será utilizado pelo Grupo de Teatro da FDUP Direitoàcena, para apresentação de uma adaptação do texto "Biblioteca Infernal" do sérvio Zoran Zivkovic, nos próximos dias 23, 24 e 25 de Outubro.
Bilhetes à venda a partir de 17 deOutubro, na FDUP.


Quem não comparecer pode bem contar com uns chamuscos do Inferno!!!!

quinta-feira, outubro 12, 2006

Tisanas

Realidade invertida *


Tisanas? Nunca tinha ouvido falar!
Li três e fiquei muito agradada.
Sim, não são para beber - ou talvez sejam, em pequenos tragos para saborear todas as nuances do seu paladar. São pequenos textos escritos por Ana Hatherly . Não se deixam classificar através das categorias tradicionais. A autora (poeta, romancista, ensaísta e tradutora, para além de ser professora universitária), com uma obra vasta e diversificada, escreve desde 1956, estas infusões líricas em que desconstroi a realidade para a voltar a recriar. À primeira vista não parecem fazer muito sentido, mas depois de digeridos abrem-se numa vastidão de significância.
Aqui ficam duas Tisanas (dizem-me que não são as melhores – fiquei com vontade de ler mais).

"Era uma vez duas serpentes que não gostavam uma da outra. Um dia encontraram-se num caminho muito estreito e como não gostavam uma da outra devoraram-se mutuamente. Quando cada uma devorou a outra não ficou nada. Esta história tradicional demonstra que se deve amar o próximo ou então ter muito cuidado com o que se come. " (Ana Hatherly, Tisana 61)

"Os românticos diziam que a morte é o desaparecimento do outro porque na verdade como é que eu posso conhecer o desaparecimento de mim. Penso nisto e olho para o telefone. Penso em ti. O que é que não se tornou um lugar-comum." (Ana Hatherly, Tisana 106)
* NL, procurei aplicar, nesta foto, a a técnica ensinada no iníicio do ano. Aguardo a crítica severa (até já antecipo parte)

Homenagem a um Blog amigo (I)

Luís de Freitas Branco


Nascia a 12/10/1890 um dos grandes vultos do Impressionismo na música clássica portuguesa. Tendo contactado com Débussy, Luís de Freitas Branco introduz-nos no Modernismo e cria no nosso País um gosto sinfónico. Não esquece grandes nomes da nossa literatura como Quental e Camões e publica a História Popular da Música, em 1943. Um compositor capaz de ombrear com os seus contemporâneos estrangeiros que nunca renegou as suas origens. Se apenas por isso fosse, já merecia a nossa homenagem.

Emoções

Nas linhas da tua mão me perco.
Nas feições do teu rosto me encontro.
O dedilhar de emoções no
Solene abraço em que contemplamos o sol
É penhor do enredo
Em que sonho e acordo.
Belisca-me.
O teu olhar penetrante de avelã pintado
É desafio hercúleo que espero merecer.
O cheiro catalogado em escrínio de memória
Desperta a visão sem ver, o tacto sem tocar.
Do clarão da vida nasceste.
À certeza de hoje volveste.

F.L.

quarta-feira, outubro 11, 2006

ZOOMático

Redemoinho nebuloso

Filosofia da treta (I)

Pormenor de A Criação de Adão, Miguel Ângelo, c. 1511, Capela Sistina, Cidade do Vaticano.

A dimensão de Deus é facto alheio ao entendimento humano. Não que isto signifique um divórcio entre a razão e a fé, a ciência e a religião. Muito pelo contrário, a dialéctica é a única via para enfrentar os desafios fracturantes com que vamos convivendo. A ideia de Deus faz o Homem aspirar ao Absoluto sem, todavia, com este se confundir. Absolutizar a aspiração da vida é ultrapassar limites de finitude de sentimentos que nos impedem de aceder ao que realmente importa, mesmo que tal não signifique qualquer perspectiva altruística. Posso ser o mais egoísta e realizar a felicidade dos outros desde que esteja empenhado em construir a minha própria. Se assim é, o egoísmo, entendido no sentido de legítima aspiração ao bem-estar, deve ser incentivado.
Contra uma certa corrente da generosidadezinha e do caritatismo pseudo-cristão, uma moderada – note-se – lógica hedonista pode bem temperar acessos que perturbam a racionalidade do diálogo humano. Deste modo, complexos de culpa e quejandas psicopatologias são aptas a transformar-se em fontes de prazer em estar com os outros numa perspectiva de serviço a si mesmo que, por reflexo, se transmuta em serviço ao alienus. Ponto é que esse outro não seja encarado como portador de uma capitis deminutio. Se o for, nem o indivíduo egoísta encontra um interlocutor capaz de satisfazer os seus instintos mais intra-centrados, nem esse interlocutor tem, pelo menos, a doce (e falsa) sensação de estar a ser alvo de atenção. De objecto necessário ao egoísta e de simulacro de pessoa na auto-concepção desse outro, passa a objecto inútil e desinteressante para o primeiro e a objecto com consciência de si para o outro. E assim nasce um diálogo de surdos condenado ao insucesso.
Ao contrário do que prima facie se julgaria, a paridade é condição essencial para a dialogia. A supra e infra-ordenação só no curto prazo tornam os seres felizes.

terça-feira, outubro 10, 2006

Curtas sobre metragens

Uma Verdade Inconveniente
Título original: An Inconvenient Truth
De: Davis Guggenheim
Género: Documentário
M/16 EUA, 2006, Cores, 100 min.

Estava a adiar o cumprimento deste dever – o de falar de "An Inconvenient Truth", um documentário que aborda a problemática do aquecimento global do planeta.
Nele, o antigo vice-presidente dos EUA, Al Gore, apresenta-se à frente das câmaras para fazer uma palestra semelhante às que vinha realizando, nos últimos anos, em vários pontos do mundo.
O filme tem o mérito indesmentível de alertar para um problema que toca a todos e cujas consequências, em larga medida, permanecem desconhecidas – ainda que as previsões se apresentem muito negativas.
O tom jocoso de algumas passagens suaviza a aridez da exposição, onde abundam informações técnicas e gráficos ilustrativos. As várias referências a episódios da vida de Al Gore (o da morte da irmã com cancro dos pulmões e que provocou um terramoto na família que, até então, se havia dedicado à produção de tabaco; o do acidente com um dos filhos que o levou a repensar o valor da vida e a importância de contribuir para a construção de um mundo melhor para legar às gerações vindouras; etc.) dão uma densidade humana ao palestrante e procuram explicar o imperativo categórico que parece (assim procura convencer-nos, pelo menos) movê-lo. Com estes dois ingredientes, o documentário é mais facilmente digerível por um público mais vasto.
Perpassa, no entanto, em todo o filme uma confessada postura anti-bush que lhe comunica um sabor a propaganda e lhe retira alguma seriedade. Apesar das críticas ao presidente americano, na minha opinião, nunca se afigurarem excessivas – em geral, e em particular no que concerne a esta problemática com a não assunção das obrigações plasmadas no Protocolo de Quioto – o protagonismo assumido por elas no contexto do documentário revela-se desproporcionado.
No fim, é lançado aos espectadores o repto de contribuírem para uma mudança de mentalidade. São sugeridas várias acções realizáveis à escala individual. Uma delas é falar do filme a outras pessoas. Decidi fazer a minha parte. Publiquei este post.

domingo, outubro 08, 2006

Regresso ao passado (take #3)


Um preto de cabeleira loira ou um branco de carapinha… Saudades do restaurador Olex. Não o usava eu, mas era presença constante na barbearia do meu avô. Ele próprio o utilizava e a minha avó queixava-se das almofadas pintadas de preto. O meu avô, imperturbável, dizia-me: -Disto é que os clientes gostam! Vai à tua avó que traga mais um frasco de Olex que este está a acabar.
E lá trazia. Pelo meio vinham mais umas toalhas acabadas de secar nas traseiras, nas cordas do quintal, por entre hortaliça que era o regalo e o domínio absoluto da minha avó Aurora.
Produtos como este não deviam acabar. Também eu, um dia, dele precisarei e já por cá não anda quem mo aplique ou quem mo chegue, com um afago no cabelo.

Saramago Nobel



Há oito anos atrás, José Saramago inclinava-se perante o Rei da Suécia para receber o Prémio Nobel da Literatura. Portugal - e não Espanha, como por vezes se vocifera - passava a contar, depois de Egas Moniz, com mais um laureado. Goste-se ou não - e eu pessoalmente gosto muito -, Saramago é um escritor de entre os primeiros. Já as suas posições políticas e cívicas deixam, na minha opinião, muito a desejar. Se tem palavras acutilantes e que todos precisamos de ouvir, não pode Saramago querer tornar-se uma espécie de «reserva moral» quando apoiou (será que ainda apoia?) um ditador como Castro. Fidel ou Raul. Gunther Grass é um exemplo paradigmático da «décalage» entre a palavra e a acção.
ZOOMático



Graffitti azulejar nas paredes do metro de Lisboa ou um bom mote para começar a semana

Pérolas e pontapés (I)



Num autocarro em Lisboa assisti, in loco, a uma pérola da nossa língua.

Um casal muito simpático, aí dos seus 17-18 anos, comentava:

-Olha, nunca sei se se diz «eu caibo» ou «eu cabo».

-Sim, não é fácil. «Eu cabo» soa mal, mas também não existe o verbo «caiber»... - replicou ele com ar professoral.

A primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo «caber» agradece.

sábado, outubro 07, 2006

Parabéns envergonhados

Faz hoje 54 anos. Ele é Vladimir Vladimirovitch Putin.
A Federação Russa merecia melhor do que este ex-líder do KGB.
E o mundo também. Longe de mim defender um retorno a uma qualquer
«guerra fria», mas é essencial uma Rússia forte para a manutenção
dos equilíbrios indispensáveis com os EUA.
Um poleiro necessita de pelo menos dois galos. E Putin, apesar da
aparência, é mais do tipo garnizé...

Mozart e Lopes-Graça no São Carlos



Ao fim dos anos e das horas é um ciclo de música em homenagem a Lopes-Graça, Mozart e Shostakovitch. Começou ontem no São Carlos, na capital e por lá estive.
O teatro merece uma visita, em especial para contemplar o camarote real.
A Orquestra Sinfónica Portuguesa (OSP), sob a direcção de Yaniv Dinur, começou por interpretar Die Maurerfreude e Eine kleine freimaurer-Kantate, ambas de Mozart. O barítono Luís Rodrigues esteve genial, com profissionalismo e alma. Só com profissionalismo, o tenor Mário João Alves. Boa execução da OSP, sob uma direcção algo imatura, mas com muito pulso sobre a orquestra, o que é algo de paradoxal se atentarmos na jovem idade do maestro.
A segunda parte foi preenchida com Dom Duardos e Flérida, de Lopes-Graça. A peça é demasiado longa e chega mesmo à monotonia. Valeu a magnífica interpretação do Coro do Teatro Nacional de São Carlos, que conseguiu encher a sala de um doce embalar e de um enlevo só com alguma comparação na voz inigualável do narrador Luís Miguel Cintra. Nota muito negativa para a fraquíssima qualidade do castelhano da contralto Maria Luísa Freitas. Com tão poucas falas podia ter treinado a língua. É certo que estávamos em Lisboa, mas Lopes-Graça escreveu em castelhano.
Registei a ligação quase «política» entre Mozart e Lopes-Graça. Afinal, os extremos sempre se atraem…

Na Casa da Música, no dia 31/10, a não perder, pela mesma orquestra e coro, Mozart (Sinfonia n.º 38, K. 504 «Praga») e Lopes-Graça (Requiem pelas vítimas do fascismo em Portugal).

quarta-feira, outubro 04, 2006

Vento

Candido Portinari, Despejados, 1934.

Parto com a lembrança do lugar em que me fiz gente. As rugas, as mãos gastas pelo árduo trabalho do campo. As ruas empedradas em direcção ao pelourinho centro de angústias, de romarias, de funestos murmúrios. A carreira velha que une aquele pedaço de idílio ao resto do mundo-cão sobe já a custo a estrada íngreme em que a Rosário há boas décadas pôs termo a uma existência errante. As copas das árvores cochicham sobre os motivos da minha partida. Quero ver mundo, mesmo que seja para descobrir que não há mundo para além daquele microcosmo em que me enlevo todas as manhãs desde que nasci. Visto o fato de fazenda que a madrinha me deu pela Páscoa e que me serviu para acolitar o padre que por cá aparece duas vezes ao ano. A mala puída que meu pai comprou com a última cabeça de gado que lhe restava transporta pouco mais que umas calças e umas camisas andrajosas. No meio deste espectáculo de mau gosto, a Bíblia. Dentro dela as pratas de um chocolate que comi uma vez em que os tios de França vieram ver o avô que morria. Sim, é o meu avô. Está ali sentado à porta da venda e acena-me encorajadoramente. –Sempre foste o meu herói! Deste a volta a esta enxovia! –Vai, não olhes para trás! Olha que o vento sul está a levantar-se e o cheiro a terra que ele traz é força invencível para o que parte. – Sim, avô. Virei buscar-te!

Há Música na Casa

Sendo pouco atreito a dias de isto e dias daquilo, considero, no entanto, que festejar a música é festejar a vida. Assim, no passado dia 1/10, em boa companhia, assisti a um concerto de bom nível na agora chamada «Sala Suggia». Com a particularidade de os bilhetes serem grátis e de ter estado na fila desde manhã cedo, em pleno domingo… Quem corre por gosto…
Fiquei deveras satisfeito com a verificação – de que já suspeitava – que a música clássica não é para um conjunto (mínimo) de seres míopes, feios, desinteressantes, com dificuldade de relacionamento humano e que vivem em entropia num mundo de sinfonias, cantatas e árias. A sala tinha gente de todas as idades e de todos os quadrantes da sociedade. Foi, nesta acepção, um dia da música verdadeiramente democrático.
A Orquestra Nacional do Porto (ONP) interpretou «Uma pequena serenata nocturna. KV 525» (1787), de Mozart. Fico sempre com a sensação – como alguém de forma lapidar disse no final – que a ONP não tem (ainda) «unhas» para Mozart… O «Concerto para três pianos e orquestra, KV 242» (1776), do mesmo compositor, teve em António Rosado o seu mais lúcido intérprete. Com a surpresa de o maestro titular da ONP –Marc Tardue – ter também ele assegurado um dos pianos, num esforço meritório e com alguma «qualidade cénica» - resultava bem vê-lo levantar-se volta e meia para dirigir a orquestra e marcar os tempos de entrada.
Na segunda parte, Shostakovich e a «Suite for variety orchestra – “Jazz suite n.º 2”» deram um tom festivo e que me transportou para aquilo que imagino terem sido reuniões magnas do Comité Central do PC da ex-URSS. Qual Praesidium, tudo acabou com o público a cantar juntamente com a ONP, numa iniciativa de interactividade que registei. Marc Tardue marcou uns pontos. Não tanto pela execução – mediana, diria e com um programa muito colado à moda dos 250 anos do nascimento de Mozart e 100 anos do nascimento de Shostakovich –, mas pela alegria que conseguiu transmitir a um concerto tido normalmente por «seca profunda».
Para quem tinha ido, na noite anterior, assistir a um grupo todo modernaço que me deixou com os (poucos) cabelos em pé, foi uma melhoria considerável!
Ir à Casa da Música está a tornar-se um vício gostoso na minha vida. Quando lá estou com Amigos, o gosto é ainda maior.

terça-feira, outubro 03, 2006

Early Night Posts (8)



"Começo daqui a pouco, costumava pensar e permitia que os dias passassem por mim, daqui a pouco, daqui a nada, amanhã será diferente, amanhã acordo e o dia nasceu extraordinariamente azul, (...).
Começo onde me esqueci de começar, se for possível, começo no princípio de tudo, no princípio do tempo em que nem tempo havia e juro-te, pai, que vou fazer tudo para absorver bem os minutos, por beber todos os segundos, começar onde me esqueci de começar, (...).
Daqui a nada o dia começará a clarear, abrirá os braços longos sobre as sombras e expulsará a noite, daqui a nada fecharei a janela, a madrugada despertará em mim o frio que ainda não sinto, ..."
Rodrigo Guedes de Carvalho, Daqui a nada, Dom Quixote, 2005, pp. 133, 134 e 147.

domingo, outubro 01, 2006

ZOOMático no Dia Mundial da Música (1. Outubro.2006)


Balada de Coimbra em pleno Tiergarten

Em dia de homenagem à música fui recuperar uma fotografia tirada no dia de Páscoa, no maior parque natural da capital alemã.
Ali, em pleno coração verde de Berlim, a meio da manhã, fui surpreendida por uma melodia conhecida (A balada de Coimbra), no timbre do maior carrilhão da Europa.

Pintado de fresco (V)

Aviso: Este é o 5.º episódio de uma novela da vida moderna escrita a quatro mãos entre mim e a rtp.
Bernardo estava especado a olhar para Margarida. Um sorriso nervoso fugia-lhe por entre os lábios. Na casa dos 25, loiro, de olhos azuis, encorpado, era um Adónis dos tempos modernos. De fato escuro, gravata vermelha, com gel no cabelo e de olhar terno, pensava agora para consigo que só Margarida conseguia que as suas mãos gelassem perante a ideia de a encontrar.
-Olá, Bernardo! Por aqui? Tens a certeza de que não te enganaste na festa? Olha que aqui não há caviar…
-Típico comentário… Vá, deixa-te disso! A festa da Tempo está uma daquelas secas… Ah! Tirando a parte em que a minha chefe deu um estaladão na cara de um armante qualquer com quem ela andou metido…
-Sempre a cortar na casaca… Ora aí está o Bernardo da escola secundária…
Depois de alguma conversa e de uns quantos copos de tinto bem bebidos, Margarida deu-se conta de que estava nos braços daquele que sempre fora um apaixonado por si. No momento em que os lábios de ambos se tocaram, múltiplas interrogações assolaram a jornalista. Decerto arrepender-se-ia de sucumbir agora aos encantos de um filhinho da mamã rico, exactamente o oposto de Rodrigo, o pai do filho que perdera a meio de uma gravidez tumultuosa, há quase dois anos.
«Sim, onde estaria aquele estupor do Rodrigo?», pensava Margarida enquanto se agarrava cada vez mais a Bernardo.

Mário acabara por entrar no seu bólide. Estava de rastos. Madalena fizera-o relembrar o quanto sofrera naqueles quatro meses em que partilhara a sua casa com aquela mulher. Amava-a como nunca amara, mas não perdoava traições. Quando descobriu Madalena enrolada com o presidente do conselho de administração da consultora em que ele próprio trabalhara, decidiu não perdoar. Expulsou-a de casa e afrontou o traidor. Como forma de comprar o silêncio, o presidente arranjara-lhe uma promoção.
-Um par de cornos vale uma promoção… – dizia Mário em voz baixa, enquanto duas grossas lágrimas rolavam pela face em direcção ao queixo, terminando o seu percurso na aba do smoking.
De repente, uma energia fulgurante acordara-o do torpor em que por vezes caía. Afinal, havia decidido naquela manhã não mais ter pena de si mesmo. Limpou as pistas do desespero e olhou para o lado. A vespa ainda se encontrava ali. A miúda que a conduzia tinha-o impressionado. Sempre gostara de mulheres joviais e com a alegria contagiante que aquela parecia ter.
Saiu do bólide, chamou o arrumador que entretanto estava a contar os trocos para a dose da noite e entregou-lhe um bilhete enrolado numa nota de 20.
-Entrega isto à dona desta vespa. Ouviste? Tens aqui dinheiro. Olha que é importante!
Meio envergonhado, Mário arrancou em grande velocidade, quase galgando um passeio cheio de estudantes trajados. Ouviu uns impropérios e começou a contar os copos de whisky que emborcara.
Amílcar – assim se chamava o arrumador – não resistiu a ler o escrito. «Desculpe a minha falta de educação. Foi uma noite complicada… Gostava de a conhecer. Sei que não é nada ortodoxo, mas deixo-lhe o meu telemóvel».
-Que tanso! Sai-me cada cromo… Eu é que meto prá veia... – balbuciou Amílcar através dos raros e podres dentes que exibia.