segunda-feira, julho 31, 2006

Instante


James Goodwyn Clonney, Waking Up, 1851, Boston Museum of Fine Arts, Boston, EUA.


Liberdade perdida reencontrada
No auge da vida desguarnecida
É prazer de gente bem amada
Enquanto a lágrima é escondida.

Momento plácido e deleitado
Em teu regaço colhido,
Instante de oiro captado,
Que trazes na alma adormecido.

Acordar hoje é proibido,
Viver amanhã é tempo perdido!

F.L.

Intervalos de lucidez, vida de loucura


Bosch, La Nef des Fous, 1498, Le Louvre.

Não tinha esse perfume, dos Narcisos!...
Nem o calor fervente dos Abraços!...
Aquela, a quem um dia abri os braços...-
que me encantava a alma de sorrisos!...
- Vi seus olhos, então!... - os lagos lisos
Não são mais cristalinos...nem mais frios!...
- Pobres Almas de Moços... - Balbucios
E Inocentes! - e ínscios!... - E indecisos!!!...


Ângelo de Lima, in: Poesias Completas, org., pref., e notas de Fernando Guimarães, Assírio & Alvim, 1991.

Em Ângelo de Lima, poeta portuense (1872-1921), encontra-se o eixo de intersecção entre a poesia, o génio e a loucura. Internado no hospital psiquiátrico de Conde de Ferreira e depois no hospital de Rilhafões (Lisboa), onde morreria, apenas em 1971 foram publicadas as suas Poesias Completas. Em quase todas elas perpassa um sabor a alucinação, a desprendimento corpóreo do espírito, a divinização de palavras que o poeta cria, porventura atrás de grades e sob influência de tratamentos hoje banidos da psiquiatria. Dono de intervalos lúcidos, escreveu no segundo volume da revista Orpheu (1915), ao lado de nomes como Pessoa, Mário de Sá Carneiro ou Almada Negreiros. A cidade que o viu nascer para a loucura da vida deve-lhe uma homenagem. Mesmo que seja apenas num simples intervalo de lucidez.

(Leia-se, com interesse, Fernando Hilário, A Loucura de Ângelo de Lima. Eu sinto sempre o que escrevo, Ed. UFP, € 12,00.)

Early Night Posts (6)

Auto-retrato de Leonardo da Vinci (1512-1515)
"Era velho, certamente (por isso é que se lhe chama velho).
Mesmo assim: não é porque o velho fosse velho que ele era velho - ou seja, não era um senhor idoso (embora também não fosse jovem, claro) (por isso é que se lhe chama velho).
O mais simples, provavelmente, seria dizer a sua idade (se é que não temos horror a certezas tão duvidosas que mudam de ano para ano, de dia para dia, iclusive de hora para hora) (e quem sabe durante quantos anos dias e horas se estende a nossa história) (e em que sentido se estende e inflecte, a bem dizer) (por conseguinte, e repentinamente, encontrar-nos-íamos numa situação em que já não poderíamos assumir a responsabilidade das nossas afirmações irreflectidas)."
"A recusa", Imre Kertész, Editorial Presença, p. 13

sábado, julho 29, 2006

Palco das tretas - Ensaio, de José Peixoto



As Três Irmãs de Tchekhov constituem o pano de fundo à peça de teatro Ensaio, com texto de José Peixoto, direcção de Roberto Merino e elenco composto por Diana Couto (Catarina), Diana Morais (Sofia) e Sandra Ribeiro (Inês), alunas finalistas do curso superior de Teatro da ESAP, em exibição desde quinta-feira (27/7) até hoje, sempre às 21:30h, no Pequeno Auditório do Rivoli Teatro Municipal.
O T&L esteve na estreia e ficou sobretudo impressionado com a elevada qualidade do texto, bem como com a simplicidade do cenário, bem ao gosto dos que têm do teatro uma visão mais «purista»: mais palavra e menos «fita». No decurso de um ensaio numa casa suburbana em lugar remoto e com cocós de cão pelos passeios, as três actrizes intercalam o riquíssimo texto de Tchekhov com reflexões sobre as relações humanas. Cada uma delas, qual três irmãs, é um microcosmos em ebulição. Desde a loura frívola, de voz quase irritante, empenhada em mostrar um «polimento» que não tem e perdida em constantes telefonemas de um homem casado com quem se relaciona, até uma personagem mais densa, ideologicamente comprometida com uma esquerda complexada em choque com uma representante de uma espécie de direita envergonhada, esposa, mãe e amante, disparando boutades em todas as direcções, maxime em relação aos homens, terminando numa outra mais sofisticada, bloco de pedra aparente que acaba por revelar segredos escondidos e que constitui o contra-peso de inteligência, tudo caminha para o fim do ensaio, dando a sensação de que a densidade do texto perde pela profusão exagerada de temas e por interpretações que, como é natural, comportam ainda grande espaço de evolução.
Peça aparentemente anti-masculina, de permanentes paradoxos, transforma-se num hino à expressão de sentimentos e à admissão da mera condição humana de Malraux.

Orfeu e Narciso


Qual andarilho emigrado, vou sentindo que Eros e a Civilização de Herbert Marcuse corresponde a uma espécie de nova Utopia de Tomás Moro: a libertação do Homem entregue nas mãos de Orfeu e Narciso. Se este último me levanta fundadas dúvidas, é também exacto que contemplarmo-nos tem a virtualidade da auto-análise cada vez mais imperiosa. O exílio do filósofo alemão em terras americanas foi ainda um grito de revolta contra a sociedade de consumo e da tara perdida que nos calhou viver. Vale a pena pensar em Orfeu e Narciso no dia em que, em 1979, se apagou aquele que muitos consideram um dos mais exuberantes cometas do século passado.

Sombra



Revê-se no sorriso de açúcar da criança
Agachada por trás dos arbustos,
Rodeada de serafins e de querubins.
Implora a pureza de outrora
Que em vão hoje perscruta
No olhar dos que o cercam.

A ave que sobre ele voa
Impende uma sombra
Seráfica e nobre
Que o não deixa de cabeça erguida
Olhar o céu.

Avança e recua,
Debalde procurando fintar o monstro,
Quando o Sol sobre a Lua se abate

Em piruetas de borboleta
De mil cores enfeitada
E que no seu ombro repousa.

- És tu, Dia?
- Não, apenas sou o que segue a Noite.


Pintura de Vincent van Gogh, Starry Night Over the Rhone, 1888, Musée d'Orsay
Zoomático

Ao sabor do vento - rtp


“Nisto descobriram trinta ou quarenta moinhos de vento que há naquele campo; e logo que D. Quixote os viu disse ao seu escudeiro:
- A ventura vai guiando as nossas coisas melhor do que poderíamos desejar; porque vês ali, amigo Sancho Pança, donde se avistam trinta ou poucos mais desaforados gigantes, com quem penso travar batalha (…);
- Que gigantes? – perguntou Sancho Pança.
- Aqueles que ali vês – respondeu seu amo – de braços compridos, que alguns costumam ter quase duas léguas.
- Olhe vossa mercê – retorquiu Sancho – que aqueles que ali se avistam não são gigantes, e o que neles parecem braços são as aspas que volteadas pelo vento, fazem girar a pedra do moinho.
- Bem se vê que – observou Dom Quixote – que não estás formado nisto de aventuras; aquilo são gigantes, e se tens medo afasta-te daí e põe-te em oração enquanto eu vou entrar com eles em fera e desigual batalha.”

Miguel de Cervantes, “O Engenhosos Fidalgo Dom Quixote da Mancha”, Civilização, 1999, p. 54.

sexta-feira, julho 28, 2006

Séquences Jazz Mix


A todos os melómanos que gostam de mesclas musicais recomenda-se uma dose diária de "Séquences Jazz Mix". Encontra-se todos os dias, entre as 23h e as 24h, no canal de televisão Mezzo. Consiste numa interessante sucessão de clips musicais e de fragmentos de concertos, em que se mistura o jazz com outras sonoridades como o soul, électro, hip hop, world...
Este é, para mim, um dos momentos favoritos oferecidos pela estação. Porém, a Mezzo vale por toda a sua programação.
(Auto)Define-se como uma "classic-jazz tv". Destacam-se, por isso, para os mais puristas (:-))) programas paralelos àquele, mas com uma natureza impoluta (ie, livre de mix): "Sequences Classic" (diariamente entre as 5h e as 8h45, entre as 11h e as 12h35 e entre as 19h e as 19h35) e "Sequences Jazz" (diariamente das 18h às 19h).
PS1 – Para que não restem dúvidas o supra-postado não são meras tretas (isso já era!), mas antes verdadeiras letras.
PS 2 – O Blog está a ressentir-se da ausência (forçada é certo!) do filipelamas.

Mãos que falam


Porto, 28 de Julho de 2006.

Tiago,

Acho que este é o teu primeiro aniversário longe de nós. Não que haja uma tradição nesse domínio cá por casa, tirando os típicos bolo e espumante e as prendinhas da praxe. Também em nada me entristece o motivo pelo qual estás do outro lado deste gelado oceano.
Do que hoje sinto falta é do olhar maroto que trazes na face durante o dia de anos. Um misto entre a porfia a uma idade ainda bem jovem e a recordação latente de quando em miúdo te empoleiravas no guarda-fatos para descobrir o presente que afadigadamente e em vão tentáramos esconder.
Não é este o local nem o meio para dizer o que gosto em ti. Até porque não temos esse hábito. Ainda bem. Basta-me a confiança que depositamos um no outro e a cumplicidade que vamos tendo, quantas vezes sem a opacidade do ruído. Basta-me ser também o irmão mais velho, por vezes armado em pai conselheiro, chato e rezingão.
Neste dia que é teu, lembro-me sempre do quanto desejava ter um irmão e da forma, diria «artística»(!), como o pedia: ia para debaixo da cama dos pais e por tal rezava. Finalmente alguém (pelo menos os pais…) me ouviu e, depois dos ciúmes habituais que me fizeram ler compulsivamente «Rosa, minha irmã Rosa», de Alice Vieira, pontuado pela fúria (confesso que até nem era: ver-te assim pequenino com a tua mãozita agarrada à minha) de ter de te embalar e não poder ir brincar para o «pátio do café», eis que temos o «rapaz» quase formado (não se vejam aqui laivos pequeno-burgueses), opinativo, brincalhão e capaz de, com uma simples frase, fazer instalar a dúvida metódica cartesiana.
É teu o Mundo! Ele está aí para ser vivido e é à Vida que hoje brindamos! Com o costumado espumante manhoso cujas bolhas se encontram, este ano, algures a meio do Atlântico…
Para não variar, andei às voltas, perdi-me em didascálicas e figuras de estilo... Ao ouvir umas músicas que deixaste no computador (terrenos desconhecidos para mim), apetece parafrasear-te

Parabéns e abração, grande mano!
Leonardo da Vinci, Estudo para mãos.

quinta-feira, julho 27, 2006

COOL-Xeia (de tretas Musicais) ... OU In a Silky-smooth Mood





Título: Dreaming wide awake
Interprete: Lizz Wright
Formato: CD
Junho de 2005





Lizz Wright esteve em Portugal, na semana passada. Cantou, no dia 19 de Julho, no Casino de Espinho. O espectáculo integrou-se no 32º Festival Internacional de Música de Espinho e serviu para apresentar, no nosso país, o seu mais recente álbum (Junho de 2005), Dreaming wide awake. O T&L não quis perder este ensejo para dedicar umas linhas a este disco e, sobretudo, à sua autora.
É o seu segundo trabalho, tendo conseguido satisfazer as expectativas criadas com o primeiro, Salt (2003). Em ambos apresenta temas originais e revisita temas já conhecidos, casando o jazz, o R&B, o gospel e o pop.
Em Dreaming wide awake, ao lado de 3 inéditos (escritos pela própria Lizz, com a ajuda de Jesse Harris, compositor do bem conhecido “Don't Know Why” de Norah Jones) aparecem, entre outras, versões de “A Taste of Honey” (Beatles), “Old Man” (Neil Young), “Stop” (de Joe Henry, mas popularizado por Madonna em “Music”!!).
Lizz Wright apropria-se destes temas – no sentido literal desta expressão: torna-os seus!
E é a voz desta intérprete de 26 anos que comunica originalidade a toda a obra. É uma voz profunda, densa, encorpada e ao mesmo tempo melíflua. Já foi mesmo comparada a Sinatra (se ele tivesse sido uma african-american woman do novo milénio, segundo Will Layman).
O produto final é, então, de uma suave harmonia. É um cd para todo ano; uma banda sonora para as 4 estações. Lizz Wright fez o que pretendia, um conjunto de canções que “criam momentos”.


Dreaming wide awake
Lizz Wright

My eyes burn
I have seen the glory of a brighter sun
My heart aches
It has felt the peace of perfect love
My mind fails
As I try to recall the bliss of a glorious day
When I was sleeping, eyes wide open
Dreaming wide awake

Who are you, stranger
To come here, and answer all my prayers?
Where are you from, angel?
You saved my life and disappeared
How do I find you?
Will you come when I need you?
Oh, how I´d love,
I´d love to be sleeping, eyes wide open
Dreaming wide awake


PS – Um agradecimento muito grande a MJLP pela dica e pelo disco!

terça-feira, julho 25, 2006

Zoomático


Parque atrás do Palácio de Charlottenburg. Ao fundo Belvedere (datado de 1788, projectado por Carl Gotthard Langhans e reconstruído após a II Guerra Mundial). Berlim.

Early Night Posts (5)


Miranda: (….) O! I have suffered
With those that I saw suffer: A brave vessel, (…)
Dashed all to pieces (…)
Had I been any god of power, I would
Have sunk the sea within the earth, or e’er
It should the good ship so have swallowed, and
The fraughting souls within her. (…)

William Shakespeare, The Tempest, Hertfordshire: Wordsworth Editions, 1994, p. 6.

Pintura de Richard Dadd (1819-1897). Come unto these yellow sands, 1842, colecção privada.

Pintado de Fresco (II)

Tinha sido uma jornada intensa. Só se apercebeu da corrida do tempo, quando, ao sair do moderno arranha-céus onde trabalhava, foi atingida à socapa pelos primeiros raios do sol que, envergonhado, espreitava no horizonte.
Pôs-se a caminho de casa, saboreando a brisa refrescante que varria a cidade e lhe deixava em desalinho as longas madeixas de cabelo. Respirou fundo. Sentia-se livre ao comando da sua velhinha vespa azul-bébé. Gostava de andar de mota. Fora um hábito que lhe ficara do tempo que vivera em Roma, em que enfrentava o trânsito infernal em hora de ponta, serpenteando pelas elegantes ruas da cidade eterna. Recordava com saudade esse período em que estagiara numa revista de moda italiana situada oportunamente na luxuosa Via Condotti nascida no sopé da Scalignata di Spagna. Espantou as recordações com um longo bocejo.
Em cada esquina, era surpreendida com a face ainda ensonada da cidade. As ruas desertas, as lojas fechadas, as persianas corridas, esparsas luzes a pontilhar os edifícios - tudo emprestava feições desconhecidas a um cenário familiar. Era uma sensação agradável, mas estranha, para quem sempre se sentira mais confortável no meio da confusão e do bulício citadino.
Embrenhada nestes pensamentos, e sem sentir a chuva miudinha que se esforçava por acordar a cidade, vence o percurso. Ainda antes de entrar em casa, faz uma paragem na pastelaria em frente para calar um lamento do estômago. Sai sem prestar atenção às notícias bombardeadas por uma apresentadora frenética e sem reparar no vizinho do andar de baixo que, numa mesa ao fundo, despede o sono com um café fumegante.
Finalmente em casa, deita-se exausta mas com a sensação de dever cumprido. Percorre de memória o artigo sobre Amsterdão, em que trabalhara afincadamente no último mês. No dia seguinte estaria nas bancas o novo número da revista de viagens de que era directora.
Regula o despertador para as cinco da tarde. O talão azul em cima da mesinha-de-cabeceira recorda-lhe que ainda não fora buscar o vestido azul à lavandaria. Precisava dele para o jantar daquela noite. A redacção em peso ia festejar o fecho atempado de mais uma edição.

Regresso ao passado (take #2)


De sua graça José Carlos Souto de Sousa Veloso, este engenheiro agrónomo que, de 1959 a 1990, começou por apresentar, depois produzir, montar e realizar o mítico TV Rural é mais uma das personagens que povoa a infância da malta da minha criação. Lembro-me do «Bom dia, senhores telespectadores! Sejam muito bem-vindos a mais um programa» que ecoava na velha sala da minha avó, vindo de um aparelho de televisão a preto e branco, alimentado por um enorme transformador que fazia pendant com o dito aparelho em quinta ou sexta mão. Era o indício que faltava para o costumado «cozido à portuguesa» domingueiro que se seguia. Por entre veredas, campos de cultivo, cooperativas e montes alentejanos, o Eng.º Sousa Veloso, de brilhantina no cabelo, passeava a sua figura garbosa de galã de cinema, durante cerca de 1500 edições, com a mesma simplicidade com que entrevistava o jornaleiro, a respectiva mulher ou o Ministro. À sua maneira, foi uma espécie de visionário: hoje seria uma figura do jet set, presença constante em eventos sociais. Já estou a imaginar: Sousa Veloso ameaça deixar Cinha se esta não o acompanhar à Feira da Golegã (Vip, Caras, Flash, Lux)...
Bem, o cozido está na mesa e o puto já tem fome depois de ter visto as técnicas da poda, os sulfatos, as nabiças, tomates, gado e cenouras. Tudo servido no prato de domingo.
Como diria o Eng.º: srs. telespectadores, despeço-me com amizade, até ao próximo programa!

domingo, julho 23, 2006

Parede(s) dedilhada(s)


A arte é, de facto, uma forma única, espantosa, de tornar simples e claras coisas extremamente complexas.
Carlos Paredes

Nos acordes da tua guitarra todo um povo que, de verdes anos vestido, faz do movimento perpétuo um porto santo. Espelho de sons na corrente de uma balada que é não só de Coimbra mas também de um País cansado de invenções livres. Os teus «dialogues» terrestres cessaram há dois anos, mas as asas sobre o mundo que dedilhas ecoam na corrente desta que é canção para ti!

Early Night Posts (4)

Salvador Dali, Persistência da Memória, 1931 - Colecção Privada, Nova Iorque

" (Os dias) Iam então agora seguir-se assim em fila, idênticos uns aos outros, inumeráveis, nada trazendo de novo! (...) O futuro era um corredor todo escuro que tinha ao fundo uma porta bem fechada.
(...)
- Veja bem como os pobres agricultores são dignos de lástima! - disse o padre, depois de voltar para junto de Emma, enquanto desdobrava o seu grande lenço de chita, segurando-lhe uma ponta com os dentes.
- Há mais quem o seja - respondeu ela.
- Pois com certeza! Os operários das fábricas, por exemplo.
- Não são esses ...
- Queira desculpar-me, mas tenho lá conhecido pobres mães de família, mulheres virtuosas, posso-lhe garantir, verdadeiras santas, que até falta de pão passam.
- E aquelas - continuou Emma (que falava contorcendo os cantos da boca) -, aquelas, Sr. Prior, que têm pão e não têm ...
- Fogo para se aquecer no Inverno - atalhou o padre.
- Que importa isso?
- Como? Que importa? A mim parece-me que, quando se tem bom aquecimento, boa alimentação ... porque, enfim ...
- Oh, Meu Deus! Meu Deus - suspirava ela."

Madame Bovary, Gustave Flaubert, Europa-América, pp. 62 e 104.

Palavras de vime


Para a Helena e para o Rui

Eis o dia que pedistes:
A Natureza, em valsa lenta,
Emoldura o quadro que sonhastes.
A Vida à porta está, sedenta,
Armada com naus de gestos floridos
E dias de matizes coloridos!

Não há cestos para palavras de vime
Em dia tão indizível e sublime!

Do meigo cisne a pairar
Em água turva ou transparente,
Fizestes divisa a recordar
A entrega do dom eloquente!
-Cisne, não tenhas medo de voar;
O infinito é teu de par em par!

Não há cestos para palavras de vime
Em dia tão indizível e sublime!

Se lei alguma conheceis,
É a do Amor incondicional
Que a todos nós ofereceis
Em vaso de perfume celestial!
Inebriantes, encontrareis a Vida
Em um trago sôfrego bebida!

Não há cestos para palavras de vime
Em dia tão indizível e sublime!

A certeza do olhar,
A angústia partilhada,
O secreto chilrear
Da lágrima encordoada…
Tudo vivereis,
Nada vos será tirado,
Decerto porque amareis
O íntimo cântico entoado!

Não há cestos para palavras de vime
Em dia tão indizível e sublime!

Aquele que em nós habita,
Mais do que num sacrário,
Seja sempre o que nos incita
A aspirar ao frondoso imaginário
De rostos que de frente se olham
E nunca, por nunca, se antolham!

Não há cestos para palavras de vime
Em dia tão indizível e sublime!

F.L.

Pintura de Jan van Eyck, The Arnolfini Marriage
1434, National Gallery , London , England

sexta-feira, julho 21, 2006

COOL-XEIA (de tretas musicais)





Título: Ingravito
Interprete: MACACO
Formato: CD



Trata-se do quarto trabalho do Grupo catalão Macaco, encabeçado por Dani «El Mono Loco» Carbone, ex-colaborador de Ojos de Brujo – que também dão ajudinha neste álbum. Uns e outros, aliás, estiveram presentes no Festival Mestiço organizado pela Casa da Música nos passados dias 10 a 13 de Maio. O T & L (então, ainda in fieri) não faltou, tendo assistido ao espectáculo dos segundos. (E diga-se, en passant, que não ficou fã da acústica do Parque de Estacionamento do Piso -1, onde decorreu todo o festival. Apesar de original, a ideia, na sua concretização, revelou-se falha de eficácia. A ressonância daquele espaço transformava todo o som que lá (se) tocava num ruído amorfo e pouco aprazível. Houve mesmo quem alvitrasse que de um espectáculo de Heavy Metal se tratava. Não foi, Rocky?)
A música dos Macaco é cozinhada num caldeirão de sonoridades, onde se adicionam, entre outros ingredientes, a rumba catalã, o hip-hop, reggae, e umas pitadas de sons latinos e brasileiros. (Lembra Manu Chao – a espaços!). É uma mezcla interessante, ou melhor, exquisita.
Depois do afamado “Entre Raíces y Antenas”, eis que surge “Ingravitto”. O nome do álbum é explicado na primeira faixa, onde pode ouvir em várias línguas (entre elas o português – do Brasil) que: “Con los pies en el suelo y las manos levantadas. Observarse adentro desde fuera y mirar a fuera desde dentro, conectarse para actuar y desconectarse para soñar. Al conjunto de estos actos se le llama estado ingravitto.”
Apesar de não ter tido tempo de ouvir com atenção o CD, deu para perceber que é de todas as suas obras, aquela que apresenta a sonoridade mais pop. Mas, como (parte da) banda sonora do (meu) Verão, cumpre parece cumprir a tarefa com suficiência. É leve, fresco e simpático.
Da fugaz audição, retive no ouvido (para além do já muito conhecido “Sideral”) a letra da canção n.º 2, “Con la mano levantá”. Apesar de muito simples, pobre estilisticamente até, e assaz repetitiva (o acompanhamento musical dá-lhe o brilho que a letra, a seco, parece não ter – ou melhor, não tem!), ela retrata o meu estado de espírito.
Por isso, pedindo antecipadamente desculpa a filipelamas (é quase um atentado, depois da bela filigrana com que me – nos - brindou ontem. SORRY!), e como I`m in a cool mood, aqui vai …

Con la mano levantá (feat. Juanlu El Canijo – Calima)
Con la mano levantá al pasado le digo adiós / y el futuro que vendrá dicen que pende de un hilo / y el presente aquí contigo mano a mano/ oye mi hermano disfruta el camino / con la mano levantá al pasado le digo adiós / y el futuro que vendrá dicen que pende de un hilo / y el presente aquí contigo mano a mano/ oye mi hermano disfruta el camino / con la mano levantá yo tocaré, voy tocando el cielo / de puntillas pa tocar / o subiendo un escalón / escribiendo otra canción de escaleras al cielo / busco un sitio pa saltar / que me de alas pa volar / realidad a ras de suelo / con las manos levantás no nos vieron al pasar / cuantas manos hay que alzar para que escuchen de nuevo / tu arma la imaginación / tu escudo no protección / intuyendo el movimiento / con la
mano levantá yo tocaré, voy tocando el cielo / con la mano levantá yo tocaré, voy tocando el cielo / Salté la valla, corrí mil batallas / pero aquí estoy de nuevo / perdí el aliento, pero no me siento / busco carrerilla pa saltar! Pa saltar! Pa saltar! / con la mano levantá / yo tocaré, el cielo.

Letra e Música: Dani Macaco “El Mono”

quinta-feira, julho 20, 2006

T&L em festa!!


Com a singeleza de «Parabéns»

As linhas das mãos são carris de sentimentos
À espera de desaguar no mar.
Amigos há que desse mar fazem oceano
De tranquilidade, de paz calma e inebriante,
De presença certa e constante, de olhar doce e transbordante.
A palavra «amigo» é por definição singular,
Tal como aquela cujo nascimento hoje assinalamos
Com a certeza de que esse oceano
Aspira ao infinito
E acorda o anjo envergonhado que em nós habita,
Fazendo da Felicidade um momento perpétuo
Composto por pequenos nadas que são tudo!

F.L.

Marc Chagall, L'Anniversaire (1915).
The Museum of Modern Art. New York.

quarta-feira, julho 19, 2006

Escritos do Marquis (I)



Terras do Forno, aos 19 de Julho de 1886
Meu ilustre e prezado amigo Senhor Conde de Alteres,

Escrevo-lhe não apenas pelo subido gosto com que sempre o faço, mas também, perdoe-me o atrevimento, para lhe dar nota de uma melancólica quanto inexorável notícia. Desapareceu hoje do mundo dos vivos aquele comerciante-poeta que ocupou parte das nossas conversas no último estio em que Vossa Senhoria teve a bondade de me acolher em seus domínios com a irrepreensível e secular hospitalidade dos Sotto d’Albuquerque.
Falo-lhe do Senhor Cesário Verde. Depois de uma derradeira viagem a Paris, a maleita colectiva que a todos nos traz em cuidados ceifou tão jovem ser. Não lhe fora suficiente o desgosto da morte dos irmãos, pais e mesmo de um filho, a Farpa que Ramalho Ortigão lhe lançou, comparando-a a Baudelaire e jogando de forma desabrida com o que de mais nobre um homem tem: o seu nome. Tal ignomínia será, por certo, vingada por amigos como os Senhores Silva Porto, Malhoa ou Columbano.
«Poeta de jornal», oiço alguns apelidarem-no! Que El-Rei nos não escute e que a presente missiva lhe seja entregue com o meu selo intacto, mas aquele fundo de res publica que de Vossa Senhoria não consigo nem ouso esconder, invade-me qual doce prazer quando vislumbro as puras letras em jornal, mesmo que o povo o não saiba ler e sempre que recordo a troça do Senhor Cesário Verde àquela estirpe de gente que se diz da burgeoise. E mesmo em relação àquela outra ordem que me traz com o tempo desalentado, o bom Senhor Cesário teve palavras certeiras, na excelsa homenagem ao imortal Camões, publicada num jornal com sede na cidade à qual melhor assentaria o título de capital do Reino: «Duas igrejas, num saudoso largo,/Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:/Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,/Assim que pela História eu me aventuro e alargo.»
Meu bom amigo e Senhoria nossa: a pena também ela me desfalece e não obstante o tempo ledo que em minhas propriedades assentou arraiais, é sempre com o coração pesado que vejo partir um cultor das letras (mesmo que com arrebiques de vendedor de maçãs e vinhos), principalmente quando o Senhor Cesário Verde sentenciou o que venho afirmando com palavras mais prosaicas – Reino este que é «foco de mandriice e de asneiras»!
Creia-me, como sempre, Senhor Dom Manoel d’Albuquerque, atento e venerando Vossa Senhoria e ilustríssima Família,


António de Mendes Castro e Themudo, Marquis de Terras do Forno.

terça-feira, julho 18, 2006

Curtas sobre Metragens



Maria Madalena
Ficha Técnica:
Título original – Mary
Realização – Abel Ferrara
Interpretações: Juliette Binoche, Forest Whitaker, Matthew Modine
Classificação: M/12
EUA/FRA/ITA, 2005, Cores, 83 min.

Sítio oficial: http://speciali.rossoalice.virgilio.it/speciali/mary/index.html


Em poucas palavras, pode dizer-se que este filme premiado com o Leão de Prata, Grande Prémio do Júri da 62ª edição do Festival de Cinema de Veneza (2005), se ocupa do retrato de uma miríade de situações de crise. Do conjunto destaca-se a vida fracturada de três personagens.
A de Mary Palesi (Juliette Binoche), uma actriz que não consegue despir a pele de Maria Madalena depois de interpretar a controversa figura no filme “This Is My Blood” sobre a vida e morte de Jesus Cristo (as cenas deste movie inside the movie acabam por povoar “Maria Madalena”, enlaçando as histórias que compõem o seu enredo)
A do cineasta Tony Childress (Matthew Modine), um realizador e actor que pretende “vender” aquele filme (onde também interpreta o papel de Jesus) sobre a temática mais comercial do momento (quando questionado sobre a eleição do teor do argumento confessa despudoradamente que se moveu pela expectativa de amealhar uma elevada receita de bilheteira), hasteando a bandeira da defesa do direito à liberdade de expressão (rebelando-se contra as tentativas de boicote à exibição do seu filme)
A crise existencial de Ted Younger (Forrest Whitaker), um apresentador de um bem sucedido (com elevadas audiências – pasme-se!) programa televisivo em que é analisada – numa perspectiva (quase apenas) retórica e argumentativa – a essência da religião cristã, mas que se conduz na vida pessoal com desrespeito pelos valores apregoados e pelas lições propaladas (o exemplo ilustrativo máximo é o adultério – interesseiro, intui-se – quando a sua mulher se encontra num estado avançado da gravidez)
Neste tríptico vai contida a pintura, em esboço, de um mundo moderno caótico e também ele em crise. Por isso mesmo, este drama religioso tem o mérito de abordar matéria sensível, numa dupla dimensão – macro e microscópica. Assim, num primeiro nível, apresenta-nos a problemática levantada pelos Evangelhos Gnósticos; aflora o debate vivo em torno da controversa figura de Maria Madalena (tão em voga com o “Código da Vinci” de Dan Brown); explora o aproveitamento económico de todas estas temáticas (em particular pela via cinematográfica e televisiva); não esquece, também, as repercussões políticas das lutas feitas tantas vezes em nome de um Deus diferente (o cenário efervescente do médio Oriente é trazido à liça). Num segundo nível desce ao particular, procurando fotografar a vivência individual da fé, que, por essência é díspar. Aí nos surge a crente por revelação e convicção (Mary Palesi) e o crente por contrição e expiação.
Em Maria Madalena, louva-se a colocação da perguntas e a não imposição de respostas; o lançamento do mote para a reflexão e a ausência de conclusão; a história, mas sobretudo o modo de a contar.
Disse que o filme retrata a crise. Ora, a crise, no seu sentido (grego) original, compreende a ideia de encruzilhada, de bifurcação, de pluralidade de alternativas para uma opção (difícil) … o filme deixa-nos, por isso, em crise. Oferece-nos uma oportunidade para meditar. Faz pensar. (Tarefa particularmente difícil neste período de canícula ;-))

rtp

Tentei fazer jus ao hemisfério do blog que concerne às tretas. As letras vão ficando (e muito bem) por conta de filipelamas.

Batalha, erro histórico ou a visão dantesca do Outro


German-Austria must return to the great German mother country, and not because of any economic considerations. No, and again no: even if such a union were unimportant from an economic point of view; yes, even if it were harmful, it must nevertheless take place. One blood demands one Reich. (…)

When man attempts to rebel against the iron logic of Nature, he comes into struggle with the principles to which he himself owes his existence as a man. And this attack I must lead to his own doom. (…)

Unfortunately, the military defeat of the German people is not an undeserved catastrophe, but the deserved chastisement of eternal retribution. (…)

A state which in this age of racial poisoning dedicates itself to the care of its best racial elements must some day become lord of the earth. May the adherents of our movement never forget this if ever the magnitude of the sacrifices should beguile them to an anxious comparison with the possible results. (…)


Excertos de Mein Kampf.

****

A 18 de Julho de 1925 era publicada «Mein Kampf» de Adolf Hitler. Certamente não é uma das minhas obras de cabeceira, mas há algum tempo atrás tive curiosidade de o ler. Sempre me impressionaram os fenómenos de loucura colectiva, de alienação em torno de um líder clarividente que, qual Rei Sol, anuncia que a verdade reside em si mesmo.
O que mais me tocou foram a maneira singela como o esperanto é apresentado como parte de uma conspiração judaica de controlo do mundo e as explicações de meridiana clareza explanadas a propósito da Alemanha da década de vinte do passado século.
Obra de um homem alienado, mostra o perigo das explicações redutoras e das conclusões apodícticas. Lembro-me de ter escrito à margem de uma página: «o determinismo levado ao extremo é não apenas a negação da liberdade, mas também da própria humanidade». Judeus e alemães estariam, segundo Hitler, condenados quase geneticamente a uma posição de vassalo-suserano. A superioridade ariana, assente em clamorosos erros históricos, justificaria a «educação» da Europa e do Mundo, incapaz de perceber o real alcance de Vestefália.
Os erros históricos pagam-se muito caros e a capitulação dos povos perante uma plateia de vencedores sequiosos e loquazes foi o melhor húmus em que frutificou o que o Führer sabia que todos temos de mais humano e profundo: a desconfiança pelo Outro, o medo da diferença.
«Mein Kampf» não é só um livro ideológico, marca do nacional-socialismo. É também, por rectas contas, um romance que insufla auto-estima em um povo desalentado. Ultrapassando qualquer «Índex», demonstra-se à saciedade que essa luta encontra pasto incandescente nas sociedades hodiernas. Pasto este que será de chama aberta enquanto não aceitarmos de vez que receamos o diferente e enquanto não o integrarmos. Não tanto através de manobras estaduais sensacionalistas e de efeito avulso, mas dentro das nossas relações mais próximas, ou melhor, dentro de nós mesmos. Aquele pensamento «diferente» que tive deve transformar-se na minha luta, ou devo lutar contra ele?

domingo, julho 16, 2006

Só(l) telúrico


Corpo flácido e sem tez
Prostrado sobre a rocha messiânica
Num embalo sem murmúrio
Resgatando ao mundo a placidez.
Estertor da luta balcânica
Reforçado pelo condimento do telúrio,
Transforma o dogma em fluidez.

Fluidez de viver,
Tempo veloz correndo,
Ansiedade de deter
O sol em mim escorrendo!

F.L.

Quadro de Vincent van Gogh, Sower with Setting Sun, 1888, Rijksmuseum Krueller-Mueller, Otterlo.

sábado, julho 15, 2006

Rembrandt




O pintor da luz e da cor, exemplo do Barroco na pintura, nasceu há precisamente 400 anos. O holandês de família humilde conheceu a ascensão, a glória e o declínio, tudo isto acompanhado de tragédias pessoais (três dos seus quatro filhos morreram e, depois, o mesmo destino leva a sua amada Saskia van Uilenburgh) e de uma dose daquele ingrediente a que chamam «loucura», o qual acompanha todos os grandes génios.
A obra de Rembrandt Harmenszoon Van Rijn, o pintor de Leiden, é o mais eloquente discurso que lhe pode ser dirigido. O exagero dos auto-retratos, a luminosidade da sua Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp (1632), o maldito quadro Nightwatch (a tradução portuguesa é má), início do fim dos compradores das suas obras, são meros exemplos da paixão com que o artista pintava.
Contudo, sempre que contemplo O Regresso do Filho Pródigo, uma sensação inexplicável invade-me. Não apenas por ter lido o famoso livro homónimo de Henri Nouwen (4.ª ed., Braga: Ed. A.O., 1999), mas simplesmente pelo modo como as mãos do pai recebem o filho que tudo gastara «em uma vida dissoluta». Mãos enrugadas, calejadas, ternas, quase andrajosas.
Ao fim e ao cabo, recordar Rembrandt é também, para mim, lembrar a casa paterna, o vínculo familiar indissolúvel e a certeza de que nesse local, por mais que não sejamos dignos dele, a luz do pintor encontrará o melhor ângulo sobre a mesa posta em festa pela magia do regresso.

Obrigado, Rembrandt!

De cima para baixo:
*O Regresso do Filho Pródigo, c 1668/69, The Hermitage, S. Petersburgo, Rússia.
*Rembrandt a Desenhar a uma Janela, 1648, Rijksmuseum, Holanda.
*A Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp, 1632, Mauritshuis Museum, Haga, Holanda.

sexta-feira, julho 14, 2006

Early Night Posts (3)


«(...) citei Rilke: "Uma só coisa é necessária: a solidão, a grande solidão interior. Caminhar em si próprio e, durante horas, não encontrar ninguém - é a isto que é preciso chegar.»(...)

Se há coisas na vida que contam com o tempo, são a amizade e a velhice. (O tempo fez-me perder a primeira, enquanto acentuava a segunda.) (...)

Mas ninguém possui verdadeiramente alguma coisa. As coisas do mundo pertencem a todos e, sobretudo, a quem aprendeu a nomeá-las. E eu já não consigo nomear nada. (...)

Deixei que os ventos e as chuvas apagassem o desejo no rasto dos répteis incandescentes. (...)

Não confio nos homens, ainda menos em Deus. (...) Repito: não confio nos homens. Confio na sabedoria remota das minhas mãos. (...)
Há homens com quem se pode aprender a ver aquilo que dentro de nós existe e não sabíamos.
Reconhecêmo-los pelo olhar. Quando se aproximam, a noite reflecte-se clara nos seus rostos. Têm gestos lentos, precisos, como os dos deuses marinhos que habitaram, além, no mar rente à ilha. (...) Transportam no coração a alegria de quem viaja.»

Al Berto, O Anjo Mudo, 2.ª ed., Lisboa: Assíro & Alvim, 2001, pp. 26-28, 32, 34.

Promoções Peste & Sida - É a 100!!



No Verão de 1986, na cidade mourisca de Lisboa, nasciam os Peste & Sida com João San Payo (baixo), Luís Varatojo (guitarra) e Raposo (bateria). Editam o (à época) LP " Veneno", claramente com influências punk em temas como " Veneno", "Furo na Cabeça", "Gingão" ou " Carraspana". O som do grupo começa a ultrapassar as fronteiras do punk e alarga-se a outros géneros como o reggae, o rock e o rap. Esta evolução nota-se no segundo disco "Portem-se Bem", um LP que tem no tema "Sol da Caparica" uma versão de um tema americano dos anos 60, o seu maior sucesso. Outros temas são " Chuta Cavalo...E Morrerás", a versão do tema popular alentejano "Vamos Lá Saindo" e "Paulinha".
O grupo começa a ter uma actividade paralela sob o nome de Despe & Siga, interpretando versões em português de clássicos do rock. Durante algum tempo existiriam os Peste e os Despe, até que a saída de San Payo (que queria manter os dois grupos) leva à extinção dos Peste & Sida.
Contudo, o regresso foi anunciado e a banda apresentou-se na passagem do ano 2003/2004 na RTP 1.
Comemoram, pois, 20 anos de carreira. Facto já de si marcante no Portugal musical.
O T&L, geralmente (?) bem informado, chama a atenção dos fãs para o passatempo comemorativo que os managers da banda estão a organizar, até 20 de Julho: oferecem 10 Cd´s e crachás a quem responder à seguinte questão: quais os títulos dos álbuns dos Peste & Sida até agora editados? e a quem sugerir o nome para o novo álbum do grupo. O registo (gratuito) é em: http://www.espantaespiritos.com/site/mailinglist.aspx?lang=PT.

Quem é amigo, quem é?

quinta-feira, julho 13, 2006

Kahlo(u-se) há 52 anos





Magdalena Carmen Frieda Kahlo y Calderón (6 de Julho de 1907 - 13 de Julho de 1954).

Eu pinto-me porque estou muitas vezes sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor.

Espero alegremente a saída - e espero nunca mais voltar - Frida. (última frase do seu Diário)

9 de novembro de 1951
Menino-amor. Ciência exacta. Vontade de resistir vivendo. Alegria saudável. Gratidão infinita. Olhos nas mãos e tacto no olhar. Limpeza e maciez de fruta. Enorme coluna vertebral que é a base para toda a estrutura humana. Um dia veremos, um dia aprenderemos. Há sempre coisas novas. Sempre ligadas à antiga existência. Alado - Meu Diego meu amor de milhares de anos. Sadga. Yrenáica. Frida. DIEGO
.

quarta-feira, julho 12, 2006

A Vida Animal como ela é - II ou a devida homenagem a um amigo provocador


"O lama é um animal que pode ser encontrado na região da cordilheira dos Andes (no Peru, na Bolívia e na Argentina), desde os tempos pré-colombianos (antes da chegada de Cristóvão Colombo à América), graças à sua excelente capacidade para sobreviver em altitudes elevadas (2300 a 4000 metros). (...) Estes animais suportam bem as altitudes relativamente elevadas, porque o seu sangue (mais especificamente, a hemoglobina) tem maior afinidade para o oxigénio do que acontece nos outros mamíferos."
Também assim há pessoas que têm uma rara capacidade de se alçar a patamares elevados da existência humana, assimilando e fazendo frutificar aquilo que de melhor a vida oferece...

Pintado de fresco (I)


Acordara revigorado. A noite passara-a em branco ao som de um adágio vespertino de um CD emprestado por um amigo.
Estava agora em frente ao espelho acariciando uma barba farta e negra. Lembrava-se de Saramago: «o homem duplicado». A imagem reflectida agradava-lhe. Curiosamente agradava-lhe. Decidira, de véspera, num daqueles momentos existenciais passados em frente a um produto em promoção numa grande superfície comercial, mudar de perspectiva.
Não mais teria pena de si mesmo enquanto reclamava com o mundo e o fado que lhe fora destinado. Tomara essa resolução ao olhar embevecido para uma criança rechonchuda e sardenta, com cabelo crispado, ao colo de uma mãe disforme vestindo calças de licra. Sempre fora assim: deixava-se tocar por imagens grandiosas de fealdade e beleza justapostas.
Frequentemente pensava que tinha a mania de ser diferente e fazia gala disso. «Ser diferente é ser alguém!», lera num desses calendários com pensamentos vendidos a metro e prontos a consumir por cérebros com mais de um neurónio. E sempre desejara ser alguém. Também não ansiava ser alguém enorme, com um busto à entrada de uma escadaria fria e distante. Bastava ser aquela pessoa de gestos simples (mesmo simplórios) que cumprira as funções que a Natureza lhe ditara.
Entretanto, um fio vermelho escorria-lhe pela face, recordando-lhe que acabara de adicionar ao rol um problema desta feita comezinho: estancar o sangue. Um arrepio gélido acordou-o do meio-sono em que mergulhara.
Voltou a olhar para o espelho enquanto uma força inelutável o impelia a deixar corre a água no lavatório.
Voltou às funções que se impusera enquanto homem e ao rosto da criança sardenta. Apetecia-lhe ouvir Korsakov. Afinal, não era todos os dias que tinha programa para a noite.

Lírio branco



Desejara hoje ver Tanatos
Face a face, dente a dente.
Atirar-lhe-ia qual Pilatos:
-Lavo as mãos do Omnipotente!

Quisera entregar-te uma flor
Para mergulhar no fundo do torpor!

É cedo ainda para me teres
Enjaulado no teu banco eterno.
-Prepara-te então para renasceres
E conquistares o teu Eu fraterno!

Conseguira entregar-te uma flor
Para emergir do fundo do torpor!

Caminho errante sem descanso,
Mas com a paz do lírio branco.

F.L.

terça-feira, julho 11, 2006

Bolinhos e aloé ou a vã glória de não mandar (no jantar)



São fantásticas as propriedades do aloé vera! Quase tão boas como as dos bifidus activos que povoam os iogurtes e substâncias quejandas. Junte-se a estas maravilhas da modernidade os produtos light, a fenilalanina, vulgo adoçante, e temos tudo aquilo de que o português médio precisa para ser feliz, sobretudo nesta época de estio em que o calor aperta e temos vergonha em mostrar aquele pneuzinho que ao longo do ano fomos carinhosamente alimentando. As babes estão na praia e o pneu não dá mesmo jeito nenhum… É também nessa altura que nos lembramos daquela resolução de ano novo de frequentar o ginásio, de puxar ferros e malhar forte e feio durante o ano todo para, no Verão, impressionarmos o sexo oposto com uns bíceps, tríceps e outros músculos de que agora não me lembro (sem malícia…) capazes de fazer o Schwarzenegger corar de inveja e de nos elevar ao ponto de um dos Rocky. Mas não. Relaxámos na forma e agora o aloé é o milagre por que tanto ansiávamos! Não há cá Nossa Sra. do Caravaggio que nos valha!
Essa maravilhosa planta com propriedades curativas e diuréticas elimina o dito pneu, cura o furúnculo, o pé de atleta, aquela unha encravada desde Novembro e mesmo a caspa que povoa os nossos ombros quais flocos de neve em árvore de Natal fora de época. Para além disto, é ainda o aloé vera responsável por importantes filosofias pós-modernas como o movimento das «aloé românticas» ou das «aloé surrealistas». Para já não falar no importante impacto na economia nacional e internacional. A pertinência e relevância da afirmação são tão evidentes que dispensam qualquer comentário suplementar pela certa chato e que não passaria de mais uma treta, tão ao gosto do T&L. Como diria alguém: a relação entre o aloé, a economia e os bolinhos de bacalhau do almoço que tenho de gramar agora ao jantar são como um elefante: uma pessoa vê-o (ao elefante) e percebe logo o que é (ou não…)!
É bom saber que uma distinta Fundação da nossa cidade se dedica a assuntos que realmente alegram e instruem a malta! Tudo com altos patrocínios de entidades insuspeitas.
Contudo, porque queremos ser democráticos, para aquela ínfima percentagem da população que não aprecia o aloé, aqui fica outra iniciativa igualmente interessante. Rapem os cabelos do peito (quem os tiver; não recomendável a senhoras) e embarquem em noites de puro deleite numa danceteria emblemática, quase tão boa como uma que recebeu ainda há muito pouco um embrulho de celofane… A não perder.
E lembre-se: tome aloé antes que precise mesmo dele! E sim, lá vou comer os bolinhos do meio-dia…

Aviso: tentei, juro que tentei, mas não consegui colocar a imagem do convite da Fundação. Fica o link http://www.bonjoia.org/

domingo, julho 09, 2006

Ocas


Aviso: para o possível leitor mais incauto, adverte-se que este «post» é auto-destrutivo.

O tema é tudo menos novo, tanto mais que estou firmemente convencido de que nada inventamos. A maiêutica socrática lá tinha a sua razão. O mote são as palavras, ou melhor, o modo desbocado como em regra as pronunciamos. O tom fácil como a elas recorremos em momentos (que deviam ser) simples da vida.
«Amigo», «Amor», «Gratidão», «Obrigado», «Sim», «Não».
As palavras têm uma ressonância própria, um conteúdo, uma forma, uma linha de corpo mais ou menos pronunciada qual corpo de uma mulher. A repetição torna-as ocas, banais, quase obscenas. Corremos o risco de, quando o significante na verdade (outra palavra empregue em vão) corresponde ao significado, não mais termos no nosso campo lexical um som ou conjunto de sons expressos de modo gráfico e reconhecido por uma comunidade que seja dotado da intensidade que lhe desejamos atribuir. Quantos «amigos» deveriam ser só «colegas» (palavra risível) ou «conhecidos»; quantos «amores» no máximo almejariam o epíteto de «desejos» ou «caprichos»? Quantos «sins» são verdadeiramente «nãos»?
Tudo isto porque as palavras são perfumes frágeis que se acondicionam em frascos pequenos e esguios. Que se partem e sentem todas as ressonâncias. Que, quando abertos, se evaporam num brado só e se gastam amiúdas vezes somente para esconder odores e não para os realçar. Palavras desbotadas, descoloridas, inertes, esvoaçantes qual coberta em janela ribeirinha fria, honrada e a tresandar a gente. Gente que mais do que palavras usadas, usa os gestos. Feios, brutos, ignóbeis, sublimes, humanos. Tudo, no fundo, palavras gastas.

Quadro de Vieira da Silva, "Bibliothéque en Feu", 1974, óleo sobre tela
Centro de Arte Moderna,
Fundação Calouste Gulbenkian



sexta-feira, julho 07, 2006

Guerra Junqueiro e a Lei



Em dia de aniversário da sua morte (7/7/1923), o T&L homenageia o escritor bacharel em Direito.

Falam Condenados

Faminto, nu, sem mãe, sem leito,
Roubei um pão.
Quem vai além de farda e de grã-cruz ao peito?
- Um ladrão!

Todos os crimes da Desgraça
Em mim reúno.
Quem vai além tirado a parelhas de raça?
- Um gatuno!

Pela miséria crapulosa,
Eu fui traído.
Que esplêndido palácio em festa! Quem o goza?
- Um bandido!

Viola, seduz, furta, assassina,
Milhão, És rei!
Que prostituta está cantando àquela esquina?
- A Lei!

quinta-feira, julho 06, 2006

Regresso ao passado (take #1)




Quem não se lembra do "Cinema de Animação" do Vasco Granja, aos sábados de manhã, sempre com o seu inconfundível "olá, amiguinhos!" e os "filmes animados" dos antigos países satélites da ex-URSS? Dava gosto ouvi-lo falar de um Mistovitch qualquer que esboçara uns traços que me pareciam muito estranhos, muito rectilíneos, enquanto olhava a TV a preto e branco como que hipnotizado.
E as típicas entrevistas que VG fazia? Tipo:

Vasco Granja - "então pequenino, como te chamas?"
Miúdo - dizia o nome
VG - "e que idade tens?"
M - dizia a idade
VG - "Então e gostaste dos desenhos animados que mostrámos agora do polaco Miroslav Kusturica?"
M - acena com a cabeça dizendo que sim de forma pouco convincente
VG - "então e gostas dos desenhos animados do búlgaro Pavlov Meszaros?"
M - fica silencioso, com uma expressão entre o embaraçado e o atordoado
VG - "então e do romeno Miklosj Dragulescu?"
M - continua silencioso, ainda com uma expressão de profundo embaraço, e começa a ficar vermelho...
VG - "e então pequenino, diz lá de que desenhos animados gostas mais?"
M - começava a desbobinar - "do Pernalonga, do Dáfidâque, do bipebipe..."
VG - "ah pois, esses hoje não temos para mostrar, por isso vamos antes ver uns lindos desenhos animados do soviético "Dmitryi Kurchatov..."

Chamem-me velho ou nostálgico, mas já não se fazem "filmes animados" como naquela altura nem apresentadores de programas para crianças tão improváveis e autênticos como Vasco Granja!

Early Night Posts (2)


O eterno retorno é uma ideia misteriosa de Nietzsche que, com ela, conseguiu dificultar a vida a não poucos filósofos: pensar que, um dia, tudo o que se viveu se há-de repetir outra vez e que essa repetição se há-de repetir ainda uma e outra vez, até ao infinito!(...)
O mito do eterno retorno diz-nos (...) que esta vida (...) é semelhante a uma sombra, é desprovida de peso (...)
Se o eterno retorno é o fardo mais pesado, então, sobre tal pano de fundo, as nossas vidas podem recortar-se em toda a sua esplêndida leveza.
Mas, na verdade, será o peso atroz e a leveza bela?

In: Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser.

Descentralização cultural


O T&L afirma-se (entre outras coisas) como um espaço de divulgação cultural «de largo espectro» (tipo antibiótico). Tudo (excepto o chamado «pimba») tem lugar de destaque, principalmente se amador e longe dos grandes centros urbanos. A cultura não pode ser privilégio de alguns! (Chiça, parece que estou com o «vírus PREC»...)

Douro vinhateiro em versão verde branco

Pano negro


Pegámos num pano negro e nele depositámos todos os nossos medos. Primeiro os mais antigos, os de criança que julgávamos esquecidos no baú das recordações poeirentas de um passado longínquo. Depois, lentamente, em um silêncio ensurdecedor, com o suor a escorrer das têmporas, fomos desfiando os medos actuais. A voz embargada e o olhar perturbado em busca de um ponto onde não existisse pedaço de outrem. Um ponto asséptico perante o qual o confronto com o medo fosse menos assustador. Falhar. Atónitos, verificámos que tudo se reconduz a este verbo taciturno, a este Ente malévolo. Esboçámos um sorriso cúmplice. Uma solidariedade mais que improvável percorreu-nos à medida que ganhávamos consciência de que a massa humana é a mesma. Medo, coragem, falhanço, avanço, recuo. Alguém lembrou: «O medo pode ser bom. É também ele que nos faz atravessar as ruas com cuidado.»

quarta-feira, julho 05, 2006

Early Night Posts (1)



Bucólica

A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;

De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;

De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.

Miguel Torga, «Diário I» (1941)

JL


O T&L, geralmente com fontes bem colocadas «in high places», soube que o grupo empresarial em que o mítico «Jornal de Letras» se insere está a equacionar terminar com o título. Seria mais uma machadada na já débil cultura portuguesa. Não proponho uma espécie de «corrente de fé», mas apenas que se compre o «JL», quanto mais não seja para dizer, com conhecimento de causa, que não se gosta e que a lei da oferta e da procura deve fazer o seu trabalho.

Klimt


Meia desilusão, este «Klimt» de Raoul Ruiz. Uma fotografia de bom nível para um argumento relativamente banal. A narração «in media res» levada ao exagero nunca foi sinónimo de qualidade. Malkovitch surge com uma representação que, apesar de não estar ao nível de outras a que nos tem habituado, não desmerece o consagrado actor. No final, de entre uma câmara que teima em rodar demasiado e de uma nudez por vezes exposta sem sentido, fica um retrato fiável da loucura e da ténue linha que a separa da sanidade. Não sei bem porquê, mas saí da sala a trautear interiormente uma das «Elegiac Melodies» de Grieg. Se mais não fora, os 5 € já valeram por isso…