terça-feira, julho 25, 2006

Pintado de Fresco (II)

Tinha sido uma jornada intensa. Só se apercebeu da corrida do tempo, quando, ao sair do moderno arranha-céus onde trabalhava, foi atingida à socapa pelos primeiros raios do sol que, envergonhado, espreitava no horizonte.
Pôs-se a caminho de casa, saboreando a brisa refrescante que varria a cidade e lhe deixava em desalinho as longas madeixas de cabelo. Respirou fundo. Sentia-se livre ao comando da sua velhinha vespa azul-bébé. Gostava de andar de mota. Fora um hábito que lhe ficara do tempo que vivera em Roma, em que enfrentava o trânsito infernal em hora de ponta, serpenteando pelas elegantes ruas da cidade eterna. Recordava com saudade esse período em que estagiara numa revista de moda italiana situada oportunamente na luxuosa Via Condotti nascida no sopé da Scalignata di Spagna. Espantou as recordações com um longo bocejo.
Em cada esquina, era surpreendida com a face ainda ensonada da cidade. As ruas desertas, as lojas fechadas, as persianas corridas, esparsas luzes a pontilhar os edifícios - tudo emprestava feições desconhecidas a um cenário familiar. Era uma sensação agradável, mas estranha, para quem sempre se sentira mais confortável no meio da confusão e do bulício citadino.
Embrenhada nestes pensamentos, e sem sentir a chuva miudinha que se esforçava por acordar a cidade, vence o percurso. Ainda antes de entrar em casa, faz uma paragem na pastelaria em frente para calar um lamento do estômago. Sai sem prestar atenção às notícias bombardeadas por uma apresentadora frenética e sem reparar no vizinho do andar de baixo que, numa mesa ao fundo, despede o sono com um café fumegante.
Finalmente em casa, deita-se exausta mas com a sensação de dever cumprido. Percorre de memória o artigo sobre Amsterdão, em que trabalhara afincadamente no último mês. No dia seguinte estaria nas bancas o novo número da revista de viagens de que era directora.
Regula o despertador para as cinco da tarde. O talão azul em cima da mesinha-de-cabeceira recorda-lhe que ainda não fora buscar o vestido azul à lavandaria. Precisava dele para o jantar daquela noite. A redacção em peso ia festejar o fecho atempado de mais uma edição.

4 comentários:

filipelamas disse...

Bem, a coisa está mesmo a ficar complicada... Para quem não acompanhou, esta é a 2.ª parte de algo parecido com um romance que se vai escrevendo no T&L. O nível a que rtp coloca a fasquia torna muito árdua a tarefa de dar seguimento à história! Em especial, adorei a lembrança de Roma e o quadro impressionista que rtp pinta. Parece também que consigo sentir os cheiros da confeitaria onde a heroína pára a fim de calar o estômago.
Sinto-me mesmo inclinado a pedir ajuda ao já vasto (eh eh!) auditório: como continuar a trama?

Anónimo disse...

Adorei a "velhinha vespa azul-bébé".

Anónimo disse...

Faltou-me dizer que estou à espera que continuem a trama com motivos sicilianos. Já agora, a trama e ...a teia que é mais importante - palavra de filha da tradição de lanifício. Aliás, esta é uma verdade metafórica na vida: se não houver teia de jeito não há trama que se lhe ponha em cima e disfarce.

rtp disse...

Quem sabe, quem sabe... filipelamas decide! Eu já estou a pensar no quarto episódio!
Também gostei especialmente do veículo de que a personagem é proprietária!A cor podia ser outra (verde-água, por exemplo :-))), mas esta personagem é caprichosa!