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domingo, fevereiro 20, 2011

Early Night Posts (76)

The Road to Vetheuil, Claude Monet

“O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro.
Fala de Tahir”

Mia Couto, Terra Sonâmbula, Leya SA, 2008, p. 5.

quinta-feira, fevereiro 03, 2011

Early Night Posts (75)

“Esta é a história do nosso bairro, ou, melhor dizendo, estas são as histórias do nosso bairro. (…)
Aquele acontecimento aumentou mais ainda a tensão que reinava no bairro. O administrador temia sobretudo uma coisa: que os habitantes se apercebessem que a união deles constituía uma força poderosa para fazer frente ao futuuwat. Por esse motivo julgava necessário acabar com Rifa`a e com todos os que podiam tomar o seu partido.
(…)
Contudo porque será que o nosso bairro sofre de amnésia?
(…)
- Só pela força haveremos de limpar o nosso bairro da podridão dos futuuwat. – continuou Qasim – É pela força que haveremos de realizar a vontade do Fundador! É pela força que haveremos de fazer reinar a justiça, a compaixão e a paz! E a nossa força será a primeira a não ser tirânica! ”

Maguib Mahfouz, Os filhos do nosso bairro, Civilização Editora, 2009, p. 1, p. 217, p. 239 e p. 301.

A actualidade fez-me recordar esta obra de Maguib Mahfouz que conta a história do bairro do egípcio Gabalawi, em que se sucedem os administradores do waqf e os seus futuwwat, sob o flagelo do esquecimento num tempo para todo o sempre volvido.

terça-feira, outubro 26, 2010

Early night post (74)


Descubrí que mi obsesión de que cada cosa estuviera en su puesto, cada asunto en su tiempo, cada palabra en su estilo, no era el premio merecido de una mente en orden, sino el contrario, todo un sistema de simulación inventado por mí para ocultar el desorden de mi naturaleza. Descubrí que no soy disciplinado por virtud, sino como reacción contra mi negligencia; que parezco generoso por encubrir mi mezquindad, que me paso de prudente por mal pensado, que soy conciliador para no sucumbir a mis cóleras reprimidas, que sólo soy puntual para que no se sepa cuán poco me importa el tiempo ajeno. Descubrí, en fin, que el amor no es un estado del alma sino un signo del zodíaco.

Gabriel García Márquez, Memoria de mis putas tristes, Barcelona: Debolsillo, 2009, p. 66.

quarta-feira, junho 09, 2010

Early Night Post (73)


(...) não há país algum do mundo em que o amor não transforme em poetas os enamorados. Vejo que se fazem todos os dias para aí muitas coisas que não figuram no vosso livro [Bíblia] e que não se faz nada daquilo que o livro diz; confesso-vos que isso me surpreende e aborrece. Se precisais rodear-vos de tantas precauções, é porque não sois pessoas muito dignas. - Meu filho, tudo é físico em nós (...); toda a secreção faz bem ao corpo e tudo que alivia o corpo alivia a alma; nós somos as máquinas da Providência. Realmente, que é a história senão um quadro de crimes e infortúnios? A leitura alarga a alma e um amigo esclarecido dá-lhe consolo. (...) é preciso convir que Deus não criou as mulheres senão para domar os homens. Gosto das fábulas dos filósofos, rio-me das fábulas das crianças e odeio as dos impostores. A verdade brilha com luz própria e não se iluminam os espíritos com as chamas das fogueiras. Quer-me parecer que os juízos dos homens são muitas vezes movidos pela ilusão, pela moda, pelo capricho. Todos aqueles que se fazem perseguir por vãs disputas de escola me parecem pouco sensatos; os que os perseguem parecem-me monstruosos.

Voltaire, O Ingénuo, Vila Nova de Famalicão: Edições Quasi, 2008, pp. 26, 27, 30, 45, 48, 50, 51, 55, 61, 63.

quarta-feira, maio 26, 2010

Early Night Post (72)

The Seine at Vetheuil, Claude Monet, 1879,
Musée des Beaux Arts de Rouen, France.

“Um dos mais vulgares e divulgados preconceitos consiste em afirmar que cada pessoa tem apenas as suas características determinadas, que existem pessoas boas ou más, inteligentes ou estúpidas, enérgicas ou apáticas, etc. Mas as pessoas não são assim. Podemos dizer de um individuo que é mais vezes bom do que mau, mais vezes inteligente do que estúpido, mais vezes enérgico do que apático – e vice-versa; mas será mentira se dissermos que uma pessoa é boa e inteligente, e que outra é má e estúpida. No entanto, classificamos sempre as pessoas desta maneira. O que é incorrecto. As pessoas são como os rios: a água deles é igual, a mesma por todo o lado, mas cada rio ora é estreito, ora é largo, ora é rápido, ora calmo, ora límpido, ora turvo, ora frio, ora quente. As pessoas também. Cada qual transporta em si o germe de todas as características humanas e manifesta ora umas, ora outras, e às vezes nem parece ele próprio, mas continuando, no entanto, a sê-lo.”

Lev Tolstói, Ressureição, Editorial Presença, 2010, p. 229.

quarta-feira, março 17, 2010

Early Night Post (71) - Frühling ou a anunciação da Primavera


Frühling lässt sein blaues Band
Wieder flattern durch die Lüfte
Süße, wohlbekannte Düfte
Streifen ahnungsvoll das Land
Veilchen träumen schon,
Wollen balde kommen
Horch, von fern ein leiser Harfenton!
Frühling, ja du bist's!
Dich hab ich vernommen!

Eduard Mörike (1804-1875)
Como (quase) tudo na Alemanha a Primavera vai ser pontual. O tempo melhorou significativamente.
As temperaturas estão bem mais amenas (hoje máxima de 9, amanhã prevêem-se 12 graus positivos!)
Como me explicaram hoje, a Primavera é um tema muito versado na poesia alemã. Precisamente pela ânsia com que é esperada durante um Inverno muito rigoroso.
E, sobre o mesmo tema, do "nosso" Miguel Torga

ANUNCIAÇÃO
Surdo murmúrio do rio,
a deslizar, pausado, na planura.
Mensageiro moroso
dum recado comprido,
di-lo sem pressa ao alarmado ouvido
dos salgueirais:
a neve derreteu
nos píncaros da serra;
o gado berra
dentro dos currais,
a lembrar aos zagais
o fim do cativeiro;
anda no ar um perfumado cheiro
a terra revolvida;
o vento emudeceu;
o sol desceu;
a primavera vai chegar, florida.
Miguel Torga

terça-feira, março 16, 2010

Early Night Post (71)

Don Quijote, Paula Modersohn-Becker

"Não se tinham adaptado a uma existência comum, às alegrias das pessoas normais, a um destino mediano; viviam lado a lado com a mesma esperança sem nunca falarem nisso, ou porque não se apercebiam ou simplesmanete porque eram soldados ciosos do pudor das suas almas.
Se calhar também Tronk, provavelmente. Tronk seguia à risca os artigos do regulamento, a disciplina matemática, o orgulho da responsabilidade escrupulosa, e tinha a ilusão de que isso lhe bastava. Mas se lhe tivessem dito: será sempre assim enquanto viveres, sempre igual até ao fim, também ele teria despertado. Impossível, teria dito. Algo diferente terá de acontecer, qualquer coisa realmente digna, que nos permita dizer: agora, mesmo que tenha chegado o fim, paciência.
(...)
Parecia que tinha sido ontem, contudo o tempo não deixara de se dissipar com o seu ritmo imóvel, igual para todos os homens, nem mais lento para quem é feliz nem mais veloz para os desventurados.
Nem depressa, nem devagar, três meses tinham passado. O Natal já se dissolvera na distância, e também o novo ano chegara, trazendo por alguns minutos estranhas esperanças aos homens."

"O deserto dos tártaros", Dino Buzzati, Cavalo de Ferro, 2008, pp. 60-61 e

KZ- Gedenkstätte Neuengamme








Neuengamme KZ

"Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelos e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
(...)"
Primo Levi, “Se isto é um homem” , Teorema, 2009.

sexta-feira, março 12, 2010

Early Night Post (70)

Magritte, Decalcomania

"Cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmos."
Bernardo Soares, O livro do Desassossego.


"Jeder von uns ist mehrere, ist viele, ist ein übermass an Selbsten."
Bernardo Soares, Das Buch der Unruhe.


*****

"E muitos deles (papéis) me parecem de um estranho; desreconheço-me neles."

Bernardo Soares, O livro do Desassossego.


"Und viele von ihnen kommen mir von einem Fremden geschrieben vor; ich kann mich in ihnen nicht wiedererkennen."

Bernardo Soares, Das Buch der Unruhe.

segunda-feira, março 01, 2010

Early Night Post (69)

René Magritte

“Espezinhamos tanto com as palavras na boca como com os pés na erva. Mas com o silêncio também.
Edgar calou-se.
(…)
***

Emudecemos e tornamo-nos desagradáveis, disse Edgar. Falamos e tornamo-nos ridículos.”


Herta Müller, A terra das Ameixas Verdes, Difel, 2009, pp. 9 e 203.

quinta-feira, janeiro 28, 2010

65 anos - Early Night Post (68)

“(…) porque o Lager é uma grande máquina para nos reduzir a animais, nós não devemos tornar-nos animais; (…) também neste lugar se pode sobreviver, e por isso, é preciso sobreviver, para contar, para testemunhar; (…). Que somos escravos, privados de qualquer direito, expostos a qualquer injúria, condenados à morte quase com certeza, mas que uma faculdade nos restou, e temos de a defender com todo o vigor porque é a última: a faculdade de negar o nosso consentimento. (…) Temos de engraxar os sapatos, não porque a tal obriga o regulamento, mas por dignidade e por propriedade. Temos de caminhar direitos, sem arrastar as socas, certamente não em homenagem à disciplina prussiana, mas para nos mantermos vivos, para não começarmos a morrer.”
***
“É Null Achtzehn. Não tem outro nome, Zero dezoito, os últimos três algarismos do seu número de matrícula: como se cada um se tivesse apercebido de que só um homem é digno de ter um nome, e de que Null Achtzehn já não é um homem. Penso que ele próprio se esqueceu do seu nome, age sem dúvida como se assim tivesse acontecido. Ao falar, ao olhar, dá a impressão de estar interiormente vazio, nada mais do que um invólucro , como algumas cartilagens de insectos (…), pegadas por um fio às pedras, e sacudidas pelo vento."
***
25 de Janeiro [de 1945] Como nos cansamos da alegria, do medo, da própria dor, do mesmo modo também nos cansamos da espera. Chegados a 25 de Janeiro (…), a maioria de nós estava demasiado exausta para esperar. (…)

26 de Janeiro [de 1945]. Jazíamos num mundo de mortos e de larvas. O último vestígio de civilização desaparecera à nossa volta e dentro de nós. (…)
Uma parte da nossa existência reside nas almas de quem entra em contacto connosco: eis porque é não-humana a experiência de quem viveu dias em que o homem foi uma coisa aos olhos do homem. Nós os três [Levi, Charles e Sómogyi] devemos uns aos outros ter conseguido evitá-lo em grande parte (…)
Mas a milhar de metros por cima de nós, nos rasgos entre as nuvens cinzentas, desenvolviam-se os complicados milagres dos duelos aéreos. Por cima de nós, nus, impotentes e inermes, homens do nosso tempo procuravam a morte recíproca com os instrumentos mais requintados. Um gesto do seu dedo podia provocar a destruição de todo o campo, aniquilar milhares de homens; enquanto o conjunto de todas as nossas energias e vontades não chegria para prolongar um minuto a vida de um só de nós.

27 de Janeiro [de 1945]. Madrugada (…)
Os russos chegaram enquanto Charles e eu levávamos Sómogyi para um lugar pouco afastado. Estava muito leve. Virámos a maca na neve cinzenta.
Charles tirou o boné. Tive pena de não ter boné. (...)"

Primo Levi, "Se isto é um homem", Teorema, 2009, p. 40, pp. 43-44 e pp. 174-176.

segunda-feira, janeiro 11, 2010

Early Night Post (67)

L`Espoir Rapide, Réné Magritte, Hamburg-Kunsthalle

"Todos descobrem, mais tarde ou mais cedo na vida, que a felicidade perfeita não é realizável, mas poucos se detêm a pensar na consideração oposta: que também uma infelicidade perfeita é, igualmente não realizável. Os momentos que se opõem à realização de ambos os estados-limites são da mesma natureza: derivam da nossa condição humana, que é inimiga de tudo o que é infinito. Opõe-se-lhe o nosso sempre insuficiente conhecimento do futuro; a isto se chama, num caso esperança; no outro, incerteza do amanhã. Opõe-se-lhe a certeza da morte, que impõe um limite a qualquer alegria, mas também a qualquer dor."
Primo Levi, "Se isto é um homem", Teorema, 2009, p. 15

quarta-feira, janeiro 06, 2010

Early Night Post (66)

A adoração dos Reis Magos, de Jan Brueghel, "O Velho"


A Estrela

Eu caminhei na noite
Entre silêncio e frio
Só uma estrela secreta me guiava

Grandes perigos na noite me apareceram
Da minha estrela julguei que eu a julgara
Verdadeira sendo ela só reflexo
De uma cidade a néon enfeitada

A minha solidão me pareceu coroa
Sinal de perfeição em minha fronte
Mas vi quando no vento me humilhava
Que a coroa que eu levava era de um ferro
Tão pesado que toda me dobrava

Do frio das montanhas eu pensei
«Minha pureza me cerca e me rodeia»
Porém meu pensamento apodreceu
E a pureza das coisas cintilava
E eu vi que a limpidez não era eu

E a fraqueza da carne e a miragem do espírito
Em monstruosa voz se transformaram
Disse às pedras do monte que falassem
Mas elas como pedras se calaram
Sozinha me vi delirante e perdida
E uma estrela serena me espantava

E eu caminhei na noite minha sombra
De desmedidos gestos me cercava
Silêncio e medo
Nos confins desolados caminhavam
Então eu vi chegar ao meu encontro
Aqueles que uma estrela iluminava

E assim eles disseram: «Vem connosco
Se também vens seguindo aquela estrela»
Então soube que a estrela que eu seguia
Era real e não imaginada

Grandes noites redondas nos cercaram
Grandes brumas miragens nos mostraram
Grandes silêncios de ecos vagabundos
Em direcções distantes nos chamaram
E a sombra dos três homens sobre a terra
Ao lado dos meus passos caminhava
E eu espantada vi que aquela estrela
Para a cidade dos homens nos guiava

E a estrela do céu parou em cima
de uma rua sem cor e sem beleza
Onde a luz tinha a cor que tem a cinza
Longe do verde azul da natureza

Ali não vi as coisas que eu amava
Nem o brilho do sol nem o da água

Ao lado do hospital e da prisão
Entre o agiota e o templo profanado
Onde a rua é mais triste e mais sozinha
E onde tudo parece abandonado
Um lugar pela estrela foi marcado

Nesse lugar pensei: «Quanto deserto
Atravessei para encontrar aquilo
Que morava entre os homens e tão perto»

Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto, pp.29-31

quarta-feira, dezembro 23, 2009

Natal e não Dezembro

Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio,
no prédio que amanhã for demolido…
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave…
Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
Talvez universal a consoada.

David Mourão-Ferreira
La Recherche de l`auberge, Charles-François Daubigny, Dalhousie University Art Gallery, Halifax

sábado, dezembro 19, 2009

Early Night Post (64)

Pablo Picasso, Don Quijote
“Esta é talvez a primeira e mais importante característica de qualquer obra-prima: criar no leitor o impulso evangélico de a partilhar. Alguns livros oferecem-se em silêncio, selando uma união mística mediada pela palavra de outro alguém. Noutros casos, o livro é transferido com as cicatrizes de uma leitura prévia, talvez por se temer que ao recipiente escape o que pensamos ser o melhor da obra, ou para sublinhar o que nela é memória do que já se viveu em comum.”
João Lobo Antunes, A minha aventura com o D. Quixote, in Numa cidade feliz, Gradiva, p. 179.

quarta-feira, dezembro 09, 2009

Early Night Post (63)

Monet, Waterlilies, Green Reflection, (1916-1923) @ Orangerie, Paris


"Domingo de manhã, 29/3/1998
Caro João,
Um dia era eu miúdo, apanhei um «alfaiate», um desses insectos de patas longas que sobrevoam os riachos como helicópteros. Foi uma glória! Insectos daqueles são dificílimos de capturar, e eu, criança desalmada, pus-me a mirá-lo e a remirá-lo e fiquei deslumbrado com as asas (3 pares, suponho), que eram tão transparentes que se reduziam a delicadas nervuras suspensas do nada.
Como entomólogo de sadismo curioso arranquei uma das asas, a mais pequena e soltei o bicho para ver o resultado. Céus! O voo do «alfaiate», que sempre me inigmara pelas suas miraculosas suspensões, pelos arabescos à tona da água e pela sua inimaginável esquiva, esse voo, em vez de tombar, tomou imediatamente outro desenho. Em vez de planar, corria com as asas na vertical como que a golpear a água…
Lembrei-me disto depois da bela frase com que termina o seu texto de que gostei verdadeiramente muito.
Quantas asas pede um voo que partiu em busca de outro equilíbrio?
Quantas leituras tem um livro olhado pelo mesmo olhar a diferentes horas de nós mesmos? E que leitura será a de um poema em Braille decifrado por alguém que o conheceu antes de cegar?
Desculpe o arrazoado, e obrigado por me ter dado a conhecer este texto. Um abraço sublinhado do seu amigo de sempre.
Zé"

Carta de José Cardoso Pires a João Lobo Antunes in "Numa cidade feliz" de João Lobo Antunes, Gradiva, pp. 174 e 175.

sábado, agosto 29, 2009

Early Night Posts (62)

Félix Vallotton, Im Mondschein
“O homem sobre quem escrevo não é célebre e talvez nunca o chegue a ser. É possível que ao atingir o fim da vida, não deixe, da sua passagem pela Terra, vestígio maior do que aquele que a pedra, atirada ao rio, deixa na superfície das águas. (…). Mas é possível que a singular força e doçura do seu carácter tenham uma influência sempre crescente sobre os seus semelhantes (…)”
***
“Larry ouviu-me com os olhos fixos no meu rosto, sem pestanejar, e, não sei porquê, a sua expressão contemplativa levou-me a pensar que ele escutava, não com os ouvidos, mas com algum órgão auditivo mais sensível e mais íntimo. (…)”
***
“Que procura nesses livros? – perguntou-me.
- Se o soubesse, estaria pelo menos a meio do caminho.
***
“Soprava um forte mistral e a baía, em geral tão lisa, estava salpicada de espuma branca. Os barcos de pesca baloiçavam-se suavemente. O sol brilhava esplendorosamente e, como sempre acontece quando há mistral, todos os objectos pareciam mais nítidos, como se fossem vistos através de lentes admiravelmente enfocadas. Emprestava uma vitalidade latejante, enervante, a tudo o que a gente via. (…) [Larry] Continuou em tristonho silêncio, que não quis perturbar. (…)
- Shri Ganesha costumava dizer que o silêncio também é conversa – murmurou.”

Somerset Maugham, O fio da navalha, Editores Associados, s.d., p. 7, p. 128, p. 217, pp. 253 e 254.

terça-feira, agosto 11, 2009

Early Night Post (61)


Caspar David Friedrich, Meeresufer im Mondschein, Hamburger Kunsthalle
Sachliche Romanze

Als sie einander acht Jahre kannten
(und man darf sagen: sie kannten sich gut),
kam ihre Liebe plötzlich abhanden.
Wie andern Leuten ein Stock oder Hut.

Sie waren traurig, betrugen sich heiter,
versuchten Küsse, als ob nichts sei,
und sahen sich an und wußten nicht weiter.
Da weinte sie schließlich. Und er stand dabei.

Vom Fenster aus konnte man Schiffen winken.
Er sagte, es wäre schon Viertel nach Vier
und Zeit, irgendwo Kaffee zu trinken.
Nebenan übte ein Mensch Klavier.

Sie gingen ins kleinste Café am Ort
und rührten in ihren Tassen.
Am Abend saßen sie immer noch dort.
Sie saßen allein, und sie sprachen kein Wort
und konnten es einfach nicht fassen.

Erich Kästner

domingo, julho 12, 2009

Early Night Posts (60)


René Magritte, Time Transfixed, 1939.

De súbito, Hans não reconhecia o tempo. Como alguém que distraído deixa passar a hora em que devia comparecer em determinado jardim e se espanta que seja já tão tarde, assim agora ele se espantava como se não tivesse à passagem reconhecido os dias e, por descuido, tivesse deixado passar os anos sem comparecer à sua própria vida. E não sabia bem como tanto se atrasara, encalhado em hábitos, afazeres e demoras sem jamais surgir, assomar, à proa do navio, no horizonte de Vig. Faltava algo que lhe era devido.

«Saga», in: Sophia de Mello Breyner Andresen, Histórias da Terra e do Mar, Porto: Figueirinhas, s/d, pp. 117-118.

sexta-feira, julho 10, 2009

Early Night Post (59)

Shoshana Kertesz, Retrato de Margit Kaffka

“As I ponder and reenact the past, time and time again in my thoughts sometimes I can even see certain connections. Everything that happens happens for so many reasons; I don’t Know if I always find the most authentic when I look for just one, I don’t even know if every little thing happened just the way I remember it, or whether I simply remembered it and recounted it that way so often, that I came to believe it myself. I have heard it said that when we are travelling along a mountainous country-side, sometimes you have to take just a step or two for the scenery to change completely in front of your eyes – the relationship of the hills and valleys to each other. The panorama is entirely different from every place you stop to rest. Perhaps it is the same with events, too, and possibly, what I regard today as the story of my life is merely a picture of my life, shaped by my present way of thinking. Of course, it makes it all the more mine; indeed, on such church-bell ringing afternoons as this, as warm and as solitary, I can think of no preoccupation more interesting, colourful and precious than this.”
Margit Kaffka*, Colours and Years, Corvina Books Ltd., Budapest, 1999, pp. 20 e 21.

* Escritora húngara (1880-1918)
Com um beijinho de agradecimento à X! :-)