quinta-feira, dezembro 21, 2006

Early Night Posts (14)

Joan Miró, La sonrisa de una lágrima, 1973

"Sermos nós próprios, unicamente nós próprios, é algo de extraordinário. Mas como chegar a isso, como alcançá-lo? Ah!, eis o truque mais difícil de todos. Difícil, exactamente, porque não envolve esforço. Tentas não ser isto nem aquilo, nem grande nem pequeno, nem hábil nem desajeitado... estás a perceber? Fazes o que te vem à mão. De boa vontade, bien entendu. Porque nada há que não tenha a sua importância. Nada. Em vez de risos e aplausos recebes sorrisos. Pequenos sorrisos de satisfação - e é tudo. Mas é justamente o próprio tudo... mais do que alguém pode pedir."

Henry Miller, O sorriso aos pés da escada, Edições Asa, p. 37.


Porto de Vista Esclarecida (IV)


Muitos parabéns, filipelamas! Pela segunda vez consecutiva és o vencedor do desafio do Porto de Vista: a estátua situa-se, de facto, na PRAÇA DA REPÚBLICA. E, a avaliar pelos conhecimentos castrenses demonstrados na resposta já não tenho dúvidas: tu foste à tropa!!!! ;-)
Em boa verdade, porém, ainda o vencedor não tinha visto a imagem, já rtp aventava a hipótese de se tratar da Praça da República. Faltou-lhe em velocidade no teclar o que lhe sobrou em perspicácia...

O nome oficial é «Jardim Teófilo Braga», mas todos o conhecem por «Praça da República». Veremos a razão para este facto na história da cidade do Porto.
Na sequência do Ultimato inglês, multiplicaram-se abertamente as conspirações em vários sectores da sociedade portuense contra a monarquia, que acabaram por desaguar em revolta no dia 31 de Janeiro de 1891. Contrariamente ao que os republicanos esperavam, porém, este movimento não teve o necessário apoio por parte dos militares. Apenas o batalhão de Caçadores 9 adeririu à intentona, concentrando-se no Campo de Santo Ovídio, hoje Jardim de Teófilo Braga (Praça da República). Daí, por entre vivas à República, os revoltosos dirigiram-se aos Paços do Concelho, onde foi proclamada por Alves da Veiga a implantação da República e anunciada a constituição de um Governo Provisório. No entanto, quando as tropas revoltosas subiram a rua de Santo António, hoje 31 de Janeiro, para se juntarem à Guarda Municipal, esta abriu fogo do cimo da rua sobre os revoltosos e civis que os acompanhavam, tornando inevitável a derrota.

A fotografia publicada no post anterior é de uma escultura em bronze de António Fernandes de Sá, representativa do Rapto de Ganímedes por Zeus, transformado em águia. Trata-se de uma escultura que foi premiada no Salão de Paris, de 1900.

O Jurista – entre a Realidade e o Mito (ou o princípio da incerteza de uns tipos esquisitos) - I


O Jurista, Giuseppe Arcimboldo, 1566, Museu Nacional, Estocolmo.

Inauguramos hoje uma nova rubrica que nos irá ocupar vários posts e para a qual estão convidadas as bloggistas residentes e todos os que façam parte da espécie que queremos aqui escalpelizar. Ela é multímoda o suficiente para comportar tratados infindáveis e chatos tal como o nosso objecto de estudo.
Comecemos por uma evidência: o jurista é um bicho estranho (e estamos a ser simpáticos).
Fala uma linguagem própria, procria de modo específico e tem o seu habitat natural.
***

Comecemos hoje, então, pela linguagem, rectior (esta é típica), por uma parte dela. Estamos perante um animal que é perito em debitar muitas palavras e, no final, instado a resumir, é incapaz de o fazer ou, se o faz, saem umas latinadas mutatis mutandis cum grano salis maxime hic et nunc. O sim e o não são palavras proibidas a este ser. Abreviaturas como s.m.o., p. e p., à C.S., CPP, CP, LOFTJ, RLOFTJ, CPTA, o extinto CPEREF (um dos meus predilectos), formam uma teia inextricável de miríades distintivas e sub-distintivas de metastisado estado.
Qual mensagem encriptada, o jurista vive de fórmulas redondas e de pensamentos que desafiam a lógica basilar. Se A deve a B, A pode não ser devedor. Tudo depende do ponto de vista e de um expediente de que se possa – mesmo que só de forma remota correcta – lançar mão.
E claro, as chavetas. Se abríssemos o cérebro de um jurista ele estaria pejado de travessões e chavetas. Tudo tem de ser distinguido até a um ponto quase infinitesimal em que nem mesmo o autor percebe o que há já a destrinçar. O mais certo é que a sub-sub-chaveta seja o mesmo que a sub-sub-chaveta anterior. Mas tal é suficiente para alimentar animadas (dentro do género...) disputas doutrinais em que os ditos “Autores” se digladiam em “revistas da especialidade” com fórmulas sarcástica e pretensamente bem-educadas: “o distinto Mestre não pode ter pretendido chegar a esta conclusão”, “se bem entendemos o que o insigne jurista defende”, “se bem pensamos”, “não querendo trair o pensamento que – ao que julgamos – anima o distinto Autor”.
Os adjectivos são, aqui, fórmulas ocas e em que, v. g., a “douta” p. i., o “douto” despacho ou acórdão em versão Habilus são, muitas vezes, idiotices pegadas e modo já conhecido em juízo de dizer “o burro do advogado que fez a porcaria desta peça” ou “o estúpido do juiz que desencantou esta visão peregrina das coisas”.
***

Apertis brevis
ou brevitatis causa: a consistência axiológico-normativa do que supra se acha vertido em nada responsabiliza, mediata ou imediatamente os administradores do espaço lúdico virtual que aloja o conjunto de caracteres ora sub judice.
Leia-se: não nos responsabilizamos pelas consequências nefastas para a saúde que esta rubrica tenha nos possíveis leitores.

Sob o alto patrocínio de:

National Geographic
Academia Internacional de Antropologia
Canal Panda
Cartoon Network

Floribella
Tide (Que querem? Precisei de detergente lá para casa e o Tide deu mais! Salário de jurista não dá para grandes pruridos "ético-desinfectantes"...)

Lisa Ekdahl



Procurei, até agora em vão, uma canção de Natal postável aqui no T&L.
À míngua de algo mais apropriado à quadra que vivemos, deixo, para já, uma canção de Lisa Ekdhal, intitulada (em sueco) "Vem Vet". Não sei o que significa. Nem sequer parece natalícia. Mas soa bem. E é de uma intérprete que muito aprecio.

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Porto de Vista (IV)


O T&L lança mais um desafio ao seu auditório: onde se situa esta estátua?

X


Sandro Botticelli, Primavera, c. 1478, Galeria degli Uffizi, Florença.

Chamemos-lhe X. Não por se tratar de um ser alienígena ou de um agente secreto ao serviço de um qualquer governo. Pensando melhor, talvez seja mesmo um agente secreto, mas dos verdadeiramente redentores ou mortíferos.
Sem que me ocorra qualquer advérbio que aqui expressasse o que pretendo, X assume várias faces. Mais do que Juno, não contempla somente o fim de um ano e o início do próximo, mas comporta-se mais como Cérbero que tudo vê, tudo perscruta.
Ele há-o em estado puro, surgido do nada ou de uma relação construída no desfiar do Tempo. Ele há-o rápido, certeiro, fugaz, sem deixar marcas (será mesmo X ou X-1?) ou cujas marcas permanecem coladas com um produto que se arrasta e vai corroendo as fundações, que laboriosamente rói as traves-mestras de um sumptuoso edifício até que ele cai. E quando cai ou se reergue (a imagem de Fénix aqui já está puída) ou fecha de vez o ser a X.
Há-o ainda hesitante, inseguro, necessitando de certezas absolutas que nunca chegam. E, claro, o X acomodado. O que tem demasiado medo de viver sem o respectivo quadrado (X ao quadrado – não encontro a tecla que dá para colocar o símbolo matemático…) ou que imagina que o tal quadrado, afinal, é tudo o que deseja e o que sente é um desmesurado temor de se expor. Ao Outro. A Si Mesmo.
Há-o doentio (não será todo o X doente?), de ciúmes construído, de paradoxos alimentados, de infantilidades pejado, de figuras ideais que o tal quadrado nunca poderá atingir e que o X insiste em que se tente lá chegar tantas vezes para dizer a si mesmo que não pode ter um quadrado em permanência mas vários quadrados que vão formando a quadratura do círculo ou o fechamento da abóbada que permanece escancarada.
Óbvio, há-o permanente, duradoiro, intenso mesmo ao longo de anos e anos. Raro? Talvez. Todos conhecemos no entanto vários desses X. Muitos deles, provavelmente, geraram-nos (falta o Y, claro).
Afinal quem ou o que é o raio do X? Nada disto? Tudo isto? Não sei. Duvido que alguém saiba. É pretensioso escrever sobre isto? Por certo. Então para quê escrevê-lo? Simplesmente porque sim, porque me apeteceu. Não é essa razão suficiente? Talvez seja a melhor maneira de começar a entender 0,000001 % de X.
Ah! Toda esta "chorreada" (a palavra é um perfeito ignoto) melodramática bipolar e levemente maníaco-depressiva a propósito de um filme que acabei de ver: “The Holiday”. O título em português iria fazer X corar de vergonha tamanha é a pirosice.
O quadro do pretensioso connaisseur de arte foi achado muito apropriado ao desfolhar as páginas de uma excelente prenda (ou presente? Nunca sei como é mais pretensioso…) que acabei de receber.
Bem, deixo-vos em paz. Por ora e com a chave 1 X 2.

terça-feira, dezembro 19, 2006

María de Buenos Aires



Música: Astor Piazzolla
Letra: Horacio Ferrer
Direcção musical: Rui Massena
Direcção cénica: João Henriques
Produção: Teatro Nacional de São João

Não tendo assistido no Teatro Carlos Alberto, há algum tempo, ao espectáculo «Maria de Buenos Aires», não o deixei fugir, desta vez, no Teatro Nacional de São João. Foi o Tango Nuevo de Piazzolla que me atraiu, já que o ouço, incansavelmente, vezes sem conta, tal é a fascinação que sobre mim exerce.
Esta operita, assim denominada pelos seus autores por não ser possível enquadrá-la, rigorosamente, em algum estilo pré-estabelecido, foi criada por Astor Piazzolla e Horacio Ferrer em 1968, época em que foi alvo de incompreensões e polémicas por parte da ala mais ortodoxa do tango argentino, mas em que também foi entusiasticamente recebida como símbolo da modernização do tango popular. Para a carreira do próprio Piazzola, representou o início de um novo estilo: o tango-canção; para Horacio Ferrer, considerado o principal letrista do Nuevo Tango, foi apenas o início promissor de uma frutuosa colaboração com o amigo de longa data. A música de Piazzolla e as palavras de Ferrer entrelaçam-se, a um tempo, de forma desesperada, sedutora e harmoniosa, formando um conjunto poético que nos sacode, incomoda e conquista. Surpreendentemente, porém, a marca indelével desta operita foi cunhada na minha memória, não por Piazzolla, mas sim por Ferrer, razão pela qual - perdoe-me quem achar maçadora a extensão deste texto - não resisto a transcrever algumas passagens.
A história é a do nascimento e da morte de María, enteada da Vida e de Deus: “La pequeña nació un día que estaba borracho Dios: (…)nacía con un insulto en la voz! (…) De arena y de frío le hicieron los días, tan duros! Y, a espaldas del río, allá donde el río se junta a la nada, con una pregunta bordada en la falda, la Niña María creció en siete días (…) María de Agorería,tendrás dos tangos por cruz.
Para fugir de um relacionamento amoroso mal sucedido, Maria abandona o bairro onde nasceu e ruma à noite de Buenos Aires, carregando o peso do destino já traçado: o de ouvir para sempre a revolta de um homem rejeitado na voz de todos os homens (“Yo soy María de Buenos Aires, (…) María Tango, María del arrabal, María noche, María pasión fatal, María del amor de Buenos Aires soy yo! (…) Las hembras que me envidiarán, y cada macho a mis pies como un ratón en mi trampa ha de caer.”). «Fuga e Mistério» ilustra, de forma magistral, este momento, em que, tal como Piazzolla exigia, o bandoneón canta e grita. O bandoneón é, aliás, uma figura central (protagoniza até um duelo!), cantando milongas de tristeza e de raiva (“Un bandoneón que mi tristeza tiene escrita, hoy dos temblores me ha mezclado en la garganta: con gusto a Sur, me dió el temblor de Milonguita, y otro -peor- que sabe a Norte y nadie canta!”).
Maria é uma figura simbólica, representativa de todas as Marias de igual condição (“Seré más triste, más descarte, más robada que el tango atróz que nadie ha sido todavía; y a Dios daré, muerta y de trote hacia la nada, el espasmódico temblor de cien Marías”). Surgem-nos, aliás, duas Marías: ambas voluptuosas, a primeira, vestida de branco, a segunda, de negro. O negro representa a sombra de Maria, que, depois de assassinada, deambula sem rumo pela cidade de Buenos Aires, assim recordada: “Así, del íntimo extramuro porteño de tu adiós, atravesando las fronteras sencillas de la muerte, he de traer tu canto oscuro.(…) ya tu voz -maríamente- vendrá con tu memoria, aquí pequeña y una, ahora.(…) Ya sepultado el cuerpo de María, comienza el largo via crucis de La Sombra de María. Deambula, perdida, por Buenos Aires”.
Fatal e diabólica por fora, pura por dentro, é assim Maria: “Allá va la Sombra de María a su otro infierno. Sólo, queda aquí, la vaina rosa de su cuerpo: tiene todo el mal del mundo, en flor, cabal y abierto hasta el final; y sin embargo, el corazón se ha negado a ser peor!”. A existência de Maria é ainda ensombrada por sucessivos abortos, que se sugerem. E, de cada vez, morre um pouco mais: “murió por primera vez; Y en la esquina donde aún tejen las Mamitas con esplín, dos Malenas de relente - que habían muerto muchas veces - le enseñaron a morir. Pero en su sola catamufa, zurdo antojo de un loco mimo sobrehumano, a contrayumba de dos pequeñas explosiones de los ojos, echó dos lágrimas de rimmel por la tumba. María de Buenos Aires lloro por primera vez. (…) - Cubrí tu pecho, María, con un puñado de sal.”
No final, o sacrifício de Maria é comparado ao da Virgem Maria, mãe de Deus (“Tengo atorada tanta ternura que de una sola ternura a Dios puedo parir! (…) Nuestra María de Buenos Aires, triste María de Buenos Aires: de olvido eres entre todas las mujeres.”).
Foi um espectáculo arrebatador pelo intenso diálogo entre a palavra e o som. No entanto, perante a variedade das tonalidades musicais que compõem a carreira de Piazzolla, ficou-me um ligeiro travo de monotonia e de circularidade. Cumpre compreender, porém, que o génio argentino rasgou em 1968 todas as convenções sobre o tango e que a maioria das suas obras-primas são posteriores a esta época. Basta recordar Años de Soledad, Libertango, Adios Noniño, entre muitas, muitas outras. De qualquer modo, pareceu-me identificar ali a semente de um futuro revolucionário para a história da música.

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Early Night Posts (13)


Amena Tranquilidade
"Os dois amigos afastam-se. Descem o caminho que penetra na floresta. Está um dia de indescritível beleza. O ar cheira a terra molhada e a flor de frangipana. O musgo forma almofadas bordejadas a jade e os bambus estremecem sob o peso de mil pássaros. (...)
No céu, ao sabor de uma ligeira brisa, as andorinhas escrevem poemas invisíveis. (...)
(...) O sol poente salpica de manchas douradas o tapete de musgo, e subitamente, jorrando desse mosaico verde tingido de fogo, surge uma nascente. Aparece entre duas pedras e a água que brota segue cinco direcções, como se desenhasse a forma de uma mão estendida e de cinco dedos afastados, uma mão aberta, uma mão oferecida. (...)
(...) Nela (na água da nascente) restam apenas os bons momentos e as melhores horas, tudo o que há de doce e feliz. As outras recordações, as que magoam, as que ferem, as que retalham a alma e a devoram, todas essas desaparecem, diluídas na água como uma pinga de tinta no oceano. (...) "
Philippe Claudel, A neta do senhor Linh, Edições Asa, pp. 70 e 73.
ZOOMático

Espírito natalício

(ou doce recordação de uma amizade para todas as horas)

domingo, dezembro 17, 2006

Conversas (im)prováveis (I)


D. Sebastião: A Senhora queira por obséquio desculpar-me, mas acaso sabe onde se encontra hodiernamente o Paço Real?

Lili Caneças: Ai que quiduxo! Que rico! Com aqueles collants Dim e aquela jaquetita da feira de Carcavelos vê-se bem que você deve ser um daqueles desgraçadinhos que vem da província para Lisboa! Que pitoresco! O Paço Real? Não quererá antes saber onde é o Príncipe Real, meu querido?

DS: Príncipe?! E o Rei? Acaso terei sido deposto?

LC: Caturreira! Deve ser um daqueles anúncio supê interessantes do National Geographic em que trazem aborígenes de zonas recônditas! Donde será este? Diga lá, ó pobrezinho, qual é a sua origem?

DS: Provenho, dama minha, de uma antiga e mui nobre linhagem perdida algures em Alcácer Quibir

LC: Sim, sim, também adoro kiwis! Fazem hiper bem ao trânsito intestinal, tá' ver e a minha querida Rosinha já o meteu com magas, maçãs, ananases, sei lá…Uma mistela…

DS: Rosinha era uma aia que lá tínhamos em África. Ela bem que me fazia a corte, mas o meu coração pertencia a outro…

LC: Ai filho, eu logo vi, com essas meias você é mesmo daquele grupo com quem me dou lindamente e respeito imenso! Olhe, venha daí a um cocktail de um relógio qualquer que foi agora lançado. Cá entre nós, os torresmos são óptimos e eu trouxe Tupperwares. Fico com comida pra toda a semana e assim poupo uns cobres prá Corporácion Dermoestética

DS: Castela? Onde fomos parar... Tupperwares?

LC: Ai rico, deixe-se de manias e ajude a tia a abrir o saco. E olhe, com esse foguete nos collants não vai longe. A Lili vai consigo ali àquelas senhoras supê rurais e compra-se um par novo made in China. Pode ser que lá esteja a Caras e sempre posso dizer que ajudo o comércio tradicional, que gosto dos imigrantes e que me dou com pessoas como você! Assim co’m’assim o Carlos Castro já me tá a maçar imenso, tá'ver?

Natal


Giotto, A Natividade e a Adoração dos Pastores, 1304-1306 (fresco), Capella degli Scrovegny, Pádua, Itália.

Tempo de depor as armas,
Espaço para o abraço.
Luz que inebria
A constante alegria
De nos abrirmos ao Outro
De par em par,
Sem máscaras,
Sem ouro, incenso ou mirra.
Apenas contemplando a Estrela
Que esboça o Oriente da Vida
Onde estás tu, tu e tu:
Seres natais em natividade crua.

Quem dera Natal…

Da coronha das armas
Transfigura uma flor.
A mais simples.
Não é outro o Natal
Que a singeleza de
Linhas que em paralelo correm
E que em noite favorável
Se encontram
Na gruta do Sonho!

Natal. Já somos Natal!

F.L.

sábado, dezembro 16, 2006

Eros


Lovesick Phaidra (fragmento de vaso grego), c. 350 a. C., British Museum, Londres.

Eros espreita a mofar,
Editando um portentoso gnoma;
Fica o Homem a idolatrar
O seu próprio genoma.
Tem-se o produto por abnóxio
Inscrito em tom de amonite.

Deixai Eros perpassar
E construir o seu santor!

Genuflexório da alma,
Candidato ao abismo,
Coração numa palma
Hasteada em truísmo.
Eis o Amor em bruto estado
Em um corpo sublimado!

Deixai Eros perpassar
E construir o seu santor!

F.L.



quinta-feira, dezembro 14, 2006

Sorver


A Árvore da Vida, Gustav Klimt (1905-1909), Museu Austríaco de Arte Aplicada, Viena, Áustria.

Sorver a vida de um trago,
Mastigar o ar que oprime
A explanação do ser.
Ser cavalo alado sem
Asas de anjo e
Sem chifres de diabo.
Recusar o maniqueísmo
De dias claros ou escuros
Na esperança de assim
Alcançar a redenção
Em teu regaço
Onde reencontro
A infância perdida (nunca vivida?)
E, inebriado pelo
Cheiro maternal leitoso,
Enfrento as hipocrisias mundanas,
A podridão das entranhas dos que me rodeiam
(Nada mais são que o espelho de mim
Reflectindo imagem levemente satírica
De alguém que se toma muito a sério).

“Ser inteiro”, como em Pessoa,
É integrar frágeis pés de barro
Em corpo obeso e farto
Que se inclina como em Pisa,
Que estrondeia qual boneco de feira
E aos trambolhões disformes
Esgravata para o fim do
Percurso
Que foi somente estrada
De sentido único,
Bordejada por daninhas ervas
E por árvores copadas
De frutos e manás vedados
Em cruzamentos entrelaçados.

F. L.

Richard Galliano - Waltz for Nicky



Richard Galliano é francês, nado e criado em Nice. Mas as raízes familiares profundas encontram-se na vizinha Itália (como o apelido, aliás, já deixava adivinhar). Dedicou muitos anos da sua vida ao estudo da música e, em particular, do seu instrumento de eleição: o Acordeão. Sempre sob a influência de outros músicos, e com uma sonoridade americanizada de jazz.
Um encontro providencial com Astor Piazzolla, fè-lo descobrir o seu caminho singular na música. O Argentino exortou-o a que, sem perder a sua identidade e as raízes francesas, criasse a “New Musette”, tal como ele havia inventado o “Tango nuevo”.
E,assim, deu início à construção de um percurso musical muito interessante, onde se contam já muitos discos. Conheci-o através do cd “Gallianissimo" (2001), que é uma colectânea best of Richard Galliano. Rendi-me. Pude assistir, maravilhada, ao seu espectáculo “Piazzolla Forever”, na Casa da Música no início de Julho. Valeu a pena, e confirmei a habilidade deste exímio tocador de Acordeão.
Aqui deixo um video da interpretação de “Waltz for Nicky” com Bireli Lagrene.

terça-feira, dezembro 12, 2006

Early Night Posts (12)

Sang Diû

«Oxalá que aquele a quem o meu "Esclarecimento" for parar às mãos e tiver paciência de lê-lo me considere doido, ou um colegial, ou, antes de mais, um condenado à morte, ao qual pareceu, logicamente, que todas as pessoas com excepção dele dão muito pouco valor à vida, desbaratam-na com demasiada ligeireza, aproveitam-na com demasiada preguiça e desvergonha, e que portanto, não a merecem, todas elas até à última! (...) O que importa é a vida, apenas a vida - o processo da sua descoberta, initerrupto e eterno, ...»
Dostoiévski, "O Idiota", Editorial Presença, pp. 407 e 408.
ZOOMático
Mil-folhas outonal

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Early Night Posts (11)

Juan Gris, Arlequim com guitarra

A publicação recente de Percepções e Realidade, de Pedro Santana Lopes, fez-me recordar um excerto d’A Lentidão, de Milan Kundera, que, mais uma vez, transcrevo.

“Todos os homens políticos de hoje, segundo Pontevin, são um tanto bailarinos, e todos os bailarinos se metem em política, o que, apesar de tudo, não deveria fazer-nos confundir uns e outros. O bailarino distingue-se do homem político corrente pelo facto de não desejar o poder mas a glória; não deseja impor ao mundo esta ou aquela organização social (borrifa-se para isso), mas sim ocupar o palco fazendo refulgir o seu eu.
(…) O combate travado pelo bailarino é aquilo a que Pontevin chama judo moral; o bailarino lança a luva em desafio ao mundo inteiro: quem é capaz de se mostrar mais moral (mais corajoso, mais honesto, mais sincero, mais disposto ao sacrifício, mais verídico) do que ele? E maneja todos os recursos que lhe permitam colocar o outro numa situação moralmente inferior.
Se um bailarino tiver a possibilidade de entrar no jogo político, recusará ostensivamente todas as negociações secretas (que são sempre o terreno de jogo da verdadeira política) denunciando-as como mentirosas, desonestas, hipócritas, sujas; adiantará as suas propostas publicamente, de cima de um estrado, cantando, dançando, e chamará os outros citando-os pelo nome a seguirem-no na sua acção; insisto: não discretamente (a fim de dar ao outro tempo para reflectir, para discutir contrapropostas), mas publicamente, e se possível de surpresa: «Está disposto agora mesmo (como eu) a renunciar ao salário do mês de Março em benefício das crianças da Somália?»
(…) [O bailarino] não concluiu como Fausto um pacto com o Diabo, concluiu-o com o Anjo: quer fazer da sua vida uma obra de arte e é nesse trabalho que o Anjo o ajuda; porque, não te esqueças, a dança é uma arte! É nesta obsessão de ver na sua própria vida a matéria de uma obra de arte que se encontra a verdadeira essência do bailarino; ele não prega a moral, dança-a!”

sábado, dezembro 09, 2006

T&L em serranias deriváticas


P.S.: T&L agradece ao NL pela fotografia e pela chama que nos iluminou e aqueceu. Ao Afonsovsky pela habitual sagacidade na escolha de spots serranos que só mais uma dúzia de pigmeus capitães deriváticos e sorumbáticos conhece...

sexta-feira, dezembro 08, 2006

ZOOMático
Iluminada

quarta-feira, dezembro 06, 2006

"Music" de Leela James



Leela James, no seu primeiro album, “A Change Is Gonna Come”, lançado em Junho do ano passado, revelou-se uma princesa da Soul Music.
Parafraseando-a “You can`t fake or buy soul... it`s either inside you or it isn`t”. E, no caso dela, está, mostrando-se numa extraordinária voz.
As suas fontes de inspiração são claras. Canta-as nesta música “Somebody play on the guitar strings/ Makes me think of my favorite songs / Reminds me of when I heard Aretha sing / Gladys, Tina, and Chaka Khan
E ao ouvir o seu disco acreditamos nos versos “And fall back in love with music/ Nothin' but the music/ Oh ...”
O clip, que aqui fica, contém um hino à Música. Ampliado em pureza quando ouvido no registo em cd. Mas, à falta de melhor...

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Porto de Vista Esclarecida (III)


Desta vez o prémio fica em casa. Os colegas bloguianos acertaram.
A Rocky teria divulgado a resposta escassos minutos após a publicação do post, não tivesse eu exercido uma levíssima pressão para evitar a sua declaração de ciência. No entanto, não se lhe dê ouvidos pois não houve coacção física, eficaz pelo menos. Ainda conseguiu ludibriar a minha atenta vigilância e levantar um pouco a ponta do véu!
Quanto a filipelamas, para além de acertar, ofereceu-nos uma breve lição de história e da topografia da cidade do Porto. Pouco há a acrescentar.
Aqui fica, apenas, um punhado de curiosidades.
Trata-se, de facto, de um monumento da autoria de Tomás Costa, em homenagem ao infante D. Henrique, nascido no Porto e grande impulsionador dos Descobrimentos portugueses durante os reinados de seu pai (D. João I), de seu irmão (D.Duarte) e parte do reinado de seu sobrinho (D. Afonso V).
A pedra utilizada na sua construcção foi extraída do rochedo da Ponta de Sagres e foi transportada, entre a Cantareira e o Cais da Ribeira, por uma caravela especialmente construída para o efeito nos estaleiros de Gaia.
A primeira pedra foi colocada pelo rei D. Carlos, a 4 de Março de 1894, quando se comemoravam os 500 anos do nascimento do Infante. Depois deste e de outros actos simbólicos (descerramento de uma lápide na fachada da muito próxima Casa do Infante), seguiu-se um jantar no Palácio da Bolsa, em que a iluminação, pela primeira vez, foi garantida pela electricidade.

Porto de Vista (III)


Quem é? Onde está? O que aponta?

domingo, dezembro 03, 2006

Eraritjaritjaka

No Teatro Nacional S. João, ontem à noite, assisti a "Eraritjaritjaka" - palavra dificilmente pronunciável e que, na expressão poética dos aborígenes da tribo australiana Aranda, significa "cheio de um desejo por algo que se perdeu". É Elias Canetti, , autor do texto de base, que no-lo explica.
A partir das reflexões deste romancista búlgaro premiado com o Nobel de Literatura em 1981, Heiner Goebbels criou um muito interessante espectáculo, cruzando teatro, música e vídeo. Através desta mistura das várias artes cénicas construiu um verdadeiro laboratório do pensamento. E os espectadores não podem deixar de se maravilhar, espantados, com cada uma das experiências discursivas e reflexivas que lá se vão realizando durante a hora e meia de peça.
Não conhecia a obra de Elias Canetti. Depois dos fragmentos de vários dos seus escritos, num texto elíptico, repetitivo e ritmado que foi sendo dito num francês profundo, fiquei a apreciar e com vontade de aprofundar o conhecimento.
Somos confrontados com imagens bizarras de sociedades exóticas (onde, pasme-se, cada pessoa só pode chorar uma vez), com mundos singulares (em que uma criança de nove anos prefere um livro a chocolate e sonha ter uma biblioteca quando for grande), com interpelações sobre o homem moderno (Seremos pinos rectos e rígidos à espera do golpe que nos provocará a queda?; e os bichos terão menos medo por não conhecerem as palavras?; E se chegada a uma certa idade começássemos a diminuir, garantido, no entanto, o respeito dado pela sabedoria. Como seria esse mundo onde até os mais poderosos seriam seres liliputianos?).
Ah ... E nunca mais olharei para um maestro de igual forma. É um ser soberano omnisciente. Domina orquestra – só ele sabe o que cada elemento da orquestra vai tocar – e o público – que fica dependente da sua ordem para aplaudir e, que até lá, se mantém, obedientemente, silencioso a ouvir. Ao seu gesto as vozes morrem e ressuscitam. Este senhor dos gestos é legislador e magistrado, que julga, de imediato e publicamente, quando algum se desvia da lei que está inscrita na partitura..
Nesta visita pelo Museu das frases contamos com a companhia e excelente interpretação de André Wilms, parceiro nesta aventura tríptica, iniciada em 1993, já que esta peça se junta a duas anteriores na formação de conjunto de reflexões críticas sobre a sociedade do século XX. A sua voz cava quadra à densidade do texto e à sobriedade do cenário. É um exímio diseur, já que o espectáculo vive muito das palavras que vão sendo ditas. (ou que vão marchando, pois as palavras em regra marcham; porém, quando cantadas nadam)
Em palco encontra-se, também, o Quarteto Mondriaan de Amesterdão, interpretando um repertório variado que inclui, entre outros, Bach, Lobanov, Ravel, até o próprio Heiner Goebbels. A abertura com ChostaKovitch dá o tom adequado à peça. Um estridentismo moderado que, qual moscardo socrático, não nos deixa repousar e nos obriga a pensar sobre o que vai sendo dito.
E, sem querer levantar o véu, para quem eventualmente fique tentado a ver ou já tivesse intenção de o fazer, apenas digo que André Wilms vai levar-nos a passear pelo Porto, vai cozinhar para nós e vai mostrar o que, enquanto assistimos à peça, perdemos (?) no ecrã da televisão nacional.
Eraritjaritjaka tem, no entanto, uma passagem fugaz na sala portuense, já que, apenas terá nova representação hoje, dia 3 de Dezembro.
Um espectáculo só recomendado a quem esteja disposto a experimentar a sensação de entrar num quadro de Magritte.
Grazie di cuore a quem me ofereceu os bilhetes. ;-)

sábado, dezembro 02, 2006

ZOOMático

Convívio em dia feriado