domingo, dezembro 03, 2006

Eraritjaritjaka

No Teatro Nacional S. João, ontem à noite, assisti a "Eraritjaritjaka" - palavra dificilmente pronunciável e que, na expressão poética dos aborígenes da tribo australiana Aranda, significa "cheio de um desejo por algo que se perdeu". É Elias Canetti, , autor do texto de base, que no-lo explica.
A partir das reflexões deste romancista búlgaro premiado com o Nobel de Literatura em 1981, Heiner Goebbels criou um muito interessante espectáculo, cruzando teatro, música e vídeo. Através desta mistura das várias artes cénicas construiu um verdadeiro laboratório do pensamento. E os espectadores não podem deixar de se maravilhar, espantados, com cada uma das experiências discursivas e reflexivas que lá se vão realizando durante a hora e meia de peça.
Não conhecia a obra de Elias Canetti. Depois dos fragmentos de vários dos seus escritos, num texto elíptico, repetitivo e ritmado que foi sendo dito num francês profundo, fiquei a apreciar e com vontade de aprofundar o conhecimento.
Somos confrontados com imagens bizarras de sociedades exóticas (onde, pasme-se, cada pessoa só pode chorar uma vez), com mundos singulares (em que uma criança de nove anos prefere um livro a chocolate e sonha ter uma biblioteca quando for grande), com interpelações sobre o homem moderno (Seremos pinos rectos e rígidos à espera do golpe que nos provocará a queda?; e os bichos terão menos medo por não conhecerem as palavras?; E se chegada a uma certa idade começássemos a diminuir, garantido, no entanto, o respeito dado pela sabedoria. Como seria esse mundo onde até os mais poderosos seriam seres liliputianos?).
Ah ... E nunca mais olharei para um maestro de igual forma. É um ser soberano omnisciente. Domina orquestra – só ele sabe o que cada elemento da orquestra vai tocar – e o público – que fica dependente da sua ordem para aplaudir e, que até lá, se mantém, obedientemente, silencioso a ouvir. Ao seu gesto as vozes morrem e ressuscitam. Este senhor dos gestos é legislador e magistrado, que julga, de imediato e publicamente, quando algum se desvia da lei que está inscrita na partitura..
Nesta visita pelo Museu das frases contamos com a companhia e excelente interpretação de André Wilms, parceiro nesta aventura tríptica, iniciada em 1993, já que esta peça se junta a duas anteriores na formação de conjunto de reflexões críticas sobre a sociedade do século XX. A sua voz cava quadra à densidade do texto e à sobriedade do cenário. É um exímio diseur, já que o espectáculo vive muito das palavras que vão sendo ditas. (ou que vão marchando, pois as palavras em regra marcham; porém, quando cantadas nadam)
Em palco encontra-se, também, o Quarteto Mondriaan de Amesterdão, interpretando um repertório variado que inclui, entre outros, Bach, Lobanov, Ravel, até o próprio Heiner Goebbels. A abertura com ChostaKovitch dá o tom adequado à peça. Um estridentismo moderado que, qual moscardo socrático, não nos deixa repousar e nos obriga a pensar sobre o que vai sendo dito.
E, sem querer levantar o véu, para quem eventualmente fique tentado a ver ou já tivesse intenção de o fazer, apenas digo que André Wilms vai levar-nos a passear pelo Porto, vai cozinhar para nós e vai mostrar o que, enquanto assistimos à peça, perdemos (?) no ecrã da televisão nacional.
Eraritjaritjaka tem, no entanto, uma passagem fugaz na sala portuense, já que, apenas terá nova representação hoje, dia 3 de Dezembro.
Um espectáculo só recomendado a quem esteja disposto a experimentar a sensação de entrar num quadro de Magritte.
Grazie di cuore a quem me ofereceu os bilhetes. ;-)

3 comentários:

filipelamas disse...

Adorei a citação da obra! Fiquei curioso! Prometo ir ver!

rtp disse...

Atenção que as citações, mesmo as que estão em itálico, não são textuais. Foram feitas de memória e tentando dar uma ideia aproximada do texto representado. Não tenho qualquer obra do autor ... ainda ....

Gabriel Villa disse...

também chamado saudades! ;)