“(…) porque o Lager é uma grande máquina para nos reduzir a animais, nós não devemos tornar-nos animais; (…) também neste lugar se pode sobreviver, e por isso, é preciso sobreviver, para contar, para testemunhar; (…). Que somos escravos, privados de qualquer direito, expostos a qualquer injúria, condenados à morte quase com certeza, mas que uma faculdade nos restou, e temos de a defender com todo o vigor porque é a última: a faculdade de negar o nosso consentimento. (…) Temos de engraxar os sapatos, não porque a tal obriga o regulamento, mas por dignidade e por propriedade. Temos de caminhar direitos, sem arrastar as socas, certamente não em homenagem à disciplina prussiana, mas para nos mantermos vivos, para não começarmos a morrer.”
26 de Janeiro [de 1945]. Jazíamos num mundo de mortos e de larvas. O último vestígio de civilização desaparecera à nossa volta e dentro de nós. (…)
Uma parte da nossa existência reside nas almas de quem entra em contacto connosco: eis porque é não-humana a experiência de quem viveu dias em que o homem foi uma coisa aos olhos do homem. Nós os três [Levi, Charles e Sómogyi] devemos uns aos outros ter conseguido evitá-lo em grande parte (…)
Mas a milhar de metros por cima de nós, nos rasgos entre as nuvens cinzentas, desenvolviam-se os complicados milagres dos duelos aéreos. Por cima de nós, nus, impotentes e inermes, homens do nosso tempo procuravam a morte recíproca com os instrumentos mais requintados. Um gesto do seu dedo podia provocar a destruição de todo o campo, aniquilar milhares de homens; enquanto o conjunto de todas as nossas energias e vontades não chegria para prolongar um minuto a vida de um só de nós.
Primo Levi, "Se isto é um homem", Teorema, 2009, p. 40, pp. 43-44 e pp. 174-176.
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“É Null Achtzehn. Não tem outro nome, Zero dezoito, os últimos três algarismos do seu número de matrícula: como se cada um se tivesse apercebido de que só um homem é digno de ter um nome, e de que Null Achtzehn já não é um homem. Penso que ele próprio se esqueceu do seu nome, age sem dúvida como se assim tivesse acontecido. Ao falar, ao olhar, dá a impressão de estar interiormente vazio, nada mais do que um invólucro , como algumas cartilagens de insectos (…), pegadas por um fio às pedras, e sacudidas pelo vento."
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25 de Janeiro [de 1945] Como nos cansamos da alegria, do medo, da própria dor, do mesmo modo também nos cansamos da espera. Chegados a 25 de Janeiro (…), a maioria de nós estava demasiado exausta para esperar. (…)
26 de Janeiro [de 1945]. Jazíamos num mundo de mortos e de larvas. O último vestígio de civilização desaparecera à nossa volta e dentro de nós. (…)
Uma parte da nossa existência reside nas almas de quem entra em contacto connosco: eis porque é não-humana a experiência de quem viveu dias em que o homem foi uma coisa aos olhos do homem. Nós os três [Levi, Charles e Sómogyi] devemos uns aos outros ter conseguido evitá-lo em grande parte (…)
Mas a milhar de metros por cima de nós, nos rasgos entre as nuvens cinzentas, desenvolviam-se os complicados milagres dos duelos aéreos. Por cima de nós, nus, impotentes e inermes, homens do nosso tempo procuravam a morte recíproca com os instrumentos mais requintados. Um gesto do seu dedo podia provocar a destruição de todo o campo, aniquilar milhares de homens; enquanto o conjunto de todas as nossas energias e vontades não chegria para prolongar um minuto a vida de um só de nós.
27 de Janeiro [de 1945]. Madrugada (…)
Os russos chegaram enquanto Charles e eu levávamos Sómogyi para um lugar pouco afastado. Estava muito leve. Virámos a maca na neve cinzenta.
Charles tirou o boné. Tive pena de não ter boné. (...)"
Os russos chegaram enquanto Charles e eu levávamos Sómogyi para um lugar pouco afastado. Estava muito leve. Virámos a maca na neve cinzenta.
Charles tirou o boné. Tive pena de não ter boné. (...)"
Primo Levi, "Se isto é um homem", Teorema, 2009, p. 40, pp. 43-44 e pp. 174-176.
4 comentários:
é sem dúvida um dos livros que tenho de ler estas férias... e esta referência ainda me fez ter mais vontade. felizmente o último exame á amanhã.*
um dos melhores livros q li até hoje.
fim trágico o do Primo...provavelmente sucumbiu ao peso das memórias.
Faz isso, X!´
É um livor que deixa marcas profundas em quem o lê!
Já não vim a tempo de te desejar boa sorte para o último exame! :-( *
Concordo consigo, Me, Myself and I: é um livro extraordinário!
vou tomar nota...!
obrigada
csd
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