sábado, julho 29, 2006

Zoomático

Ao sabor do vento - rtp


“Nisto descobriram trinta ou quarenta moinhos de vento que há naquele campo; e logo que D. Quixote os viu disse ao seu escudeiro:
- A ventura vai guiando as nossas coisas melhor do que poderíamos desejar; porque vês ali, amigo Sancho Pança, donde se avistam trinta ou poucos mais desaforados gigantes, com quem penso travar batalha (…);
- Que gigantes? – perguntou Sancho Pança.
- Aqueles que ali vês – respondeu seu amo – de braços compridos, que alguns costumam ter quase duas léguas.
- Olhe vossa mercê – retorquiu Sancho – que aqueles que ali se avistam não são gigantes, e o que neles parecem braços são as aspas que volteadas pelo vento, fazem girar a pedra do moinho.
- Bem se vê que – observou Dom Quixote – que não estás formado nisto de aventuras; aquilo são gigantes, e se tens medo afasta-te daí e põe-te em oração enquanto eu vou entrar com eles em fera e desigual batalha.”

Miguel de Cervantes, “O Engenhosos Fidalgo Dom Quixote da Mancha”, Civilização, 1999, p. 54.

3 comentários:

filipelamas disse...

Cada um de nós é capaz de ver numa simples e indefesa criatura a mais perigosa espécie, ao mesmo tempo que não vislumbra o que ela tem de especial. Assim vamos segregando do nosso convívio aqueles que, em outras circunstâncias, podiam ser a nossa circunstância. Tal como as pás de um moinho separam as golfadas de ar que vai soprando todo ele uno e que nós, humanos, teimamos em apartar. Isto em redor de uma imagem como esta, em jogo de luz e sombra.

rtp disse...

Amigo, tenho dos moinhos e das suas pás uma visão mais positiva... encaro o seu movimento como uma oposição à estagnação, à imobilidade estéril. Entristece-me a visão de um moinho parado! Atenção: falo de moinhos que aproveitam produtivamente a força do vento, e não de cataventos que se manobram estrategicamente no sentido da corrente de ar!

Claudia Sousa Dias disse...

Dom Quixote ou a percepção do mundo numa alma-espelho que reflecte uma realidade estilhaçada.

Já li e gostei muito.

CSD