Curtas sobre Metragens
Maria Madalena
Ficha Técnica:
Título original – Mary
Realização – Abel Ferrara
Interpretações: Juliette Binoche, Forest Whitaker, Matthew Modine
Classificação: M/12
EUA/FRA/ITA, 2005, Cores, 83 min.
Sítio oficial: http://speciali.rossoalice.virgilio.it/speciali/mary/index.html
Em poucas palavras, pode dizer-se que este filme premiado com o Leão de Prata, Grande Prémio do Júri da 62ª edição do Festival de Cinema de Veneza (2005), se ocupa do retrato de uma miríade de situações de crise. Do conjunto destaca-se a vida fracturada de três personagens.
A de Mary Palesi (Juliette Binoche), uma actriz que não consegue despir a pele de Maria Madalena depois de interpretar a controversa figura no filme “This Is My Blood” sobre a vida e morte de Jesus Cristo (as cenas deste movie inside the movie acabam por povoar “Maria Madalena”, enlaçando as histórias que compõem o seu enredo)
A do cineasta Tony Childress (Matthew Modine), um realizador e actor que pretende “vender” aquele filme (onde também interpreta o papel de Jesus) sobre a temática mais comercial do momento (quando questionado sobre a eleição do teor do argumento confessa despudoradamente que se moveu pela expectativa de amealhar uma elevada receita de bilheteira), hasteando a bandeira da defesa do direito à liberdade de expressão (rebelando-se contra as tentativas de boicote à exibição do seu filme)
A crise existencial de Ted Younger (Forrest Whitaker), um apresentador de um bem sucedido (com elevadas audiências – pasme-se!) programa televisivo em que é analisada – numa perspectiva (quase apenas) retórica e argumentativa – a essência da religião cristã, mas que se conduz na vida pessoal com desrespeito pelos valores apregoados e pelas lições propaladas (o exemplo ilustrativo máximo é o adultério – interesseiro, intui-se – quando a sua mulher se encontra num estado avançado da gravidez)
Neste tríptico vai contida a pintura, em esboço, de um mundo moderno caótico e também ele em crise. Por isso mesmo, este drama religioso tem o mérito de abordar matéria sensível, numa dupla dimensão – macro e microscópica. Assim, num primeiro nível, apresenta-nos a problemática levantada pelos Evangelhos Gnósticos; aflora o debate vivo em torno da controversa figura de Maria Madalena (tão em voga com o “Código da Vinci” de Dan Brown); explora o aproveitamento económico de todas estas temáticas (em particular pela via cinematográfica e televisiva); não esquece, também, as repercussões políticas das lutas feitas tantas vezes em nome de um Deus diferente (o cenário efervescente do médio Oriente é trazido à liça). Num segundo nível desce ao particular, procurando fotografar a vivência individual da fé, que, por essência é díspar. Aí nos surge a crente por revelação e convicção (Mary Palesi) e o crente por contrição e expiação.
Em Maria Madalena, louva-se a colocação da perguntas e a não imposição de respostas; o lançamento do mote para a reflexão e a ausência de conclusão; a história, mas sobretudo o modo de a contar.
Disse que o filme retrata a crise. Ora, a crise, no seu sentido (grego) original, compreende a ideia de encruzilhada, de bifurcação, de pluralidade de alternativas para uma opção (difícil) … o filme deixa-nos, por isso, em crise. Oferece-nos uma oportunidade para meditar. Faz pensar. (Tarefa particularmente difícil neste período de canícula ;-))
rtp
Tentei fazer jus ao hemisfério do blog que concerne às tretas. As letras vão ficando (e muito bem) por conta de filipelamas.
6 comentários:
É, sem dúvida, das melhores críticas de cinema que tenho lido nos últimos tempos. Não tendo visto o filme, sinto-me impelido a colmatar esta lacuna cultural no mais breve trecho. A forma como rtp estabelece a trama, as ligações ao quotidiano a partir da ficção, o humor inteligente e acutilante que caracteriza esta blog mate estão neste post com despudorada beleza! Sem querer brincar com coisas sérias, prevejo que esta seja "a" rubrica do T&L!
Bravo!
Este é, sem dúvida alguma, um blog a consultar com frequência e a recomendar!
Pareceu-me magnífica a análise crítica a este filme que, certamente, não deixarei de ver o mais brevemente possível.
Parabéns à inauguração da rubrica cinéfila do tretas e letras e à sua autora.
Estou com muita curiosidade de ver este filme. o Ferara é um dos últimos verdadeiros desalinhados da indústria, e a maneira como filma não admite grandes compromissos - em regra ou se gosta muito ou se detesta. Eu tenho gostado muito dos filmes que vi dele, em especial dos "viciosos", de que por acaso não conheço mais ninguém que tenha gostado... E este tem o Forest Whitaker, um dos meus actores preferidos da actualidade, como brinde grátis.
Já agora, que bela crítica! Está descoberta a sucessora do João Lopes ;)
Em oposição, e como filme a não ver, o Klimt, do Raoul Ruiz. Digam as critícas o que disserem sobre a ambiance viennoise, a verdade é que o filme é um exercício pretensioso - e cansativo - de soberba intelectual que não inebria, não encanta, nada acrescenta. De resto, Malkovich igual a si mesmo, o que já foi um elogio mas neste momento é já, e apenas, uma constatação.
Já como exercício muito mais conseguido, Happy Endings, de Don Roos, a ilustrar um feixe de relações humanas num registo que é o do quotidiano, entre o trágico e o cómico.
Colega, já que estamos numa de conselhos (e que me desculpem os donos da casa por estes desvios porventura abusivos), se puderes, quiseres e houver bilhetes vai hoje à Aula magna ver o concerto da Lila Downs. Eu fui vê-la ontem na Casa da Música e foi verdadeiramente esplêndido. Diria mesmo formidável.
Ainda uma nota sobre o filme Klimt, de Raoul Ruiz. Não podia concordar mais com o comentário já "postado". Achei pretensioso e desinteressante, despertador de uma vontade demoníaca de me levantar e deixar o filme a meio. Curiosamente fiquei depois a pensar que talvez o filme até cumprisse o seu objectivo no sentido em que era esquisofrénico e de que era exactamente a esquisófrenia de Klimt o objecto do filme....
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