quarta-feira, julho 12, 2006

Pintado de fresco (I)


Acordara revigorado. A noite passara-a em branco ao som de um adágio vespertino de um CD emprestado por um amigo.
Estava agora em frente ao espelho acariciando uma barba farta e negra. Lembrava-se de Saramago: «o homem duplicado». A imagem reflectida agradava-lhe. Curiosamente agradava-lhe. Decidira, de véspera, num daqueles momentos existenciais passados em frente a um produto em promoção numa grande superfície comercial, mudar de perspectiva.
Não mais teria pena de si mesmo enquanto reclamava com o mundo e o fado que lhe fora destinado. Tomara essa resolução ao olhar embevecido para uma criança rechonchuda e sardenta, com cabelo crispado, ao colo de uma mãe disforme vestindo calças de licra. Sempre fora assim: deixava-se tocar por imagens grandiosas de fealdade e beleza justapostas.
Frequentemente pensava que tinha a mania de ser diferente e fazia gala disso. «Ser diferente é ser alguém!», lera num desses calendários com pensamentos vendidos a metro e prontos a consumir por cérebros com mais de um neurónio. E sempre desejara ser alguém. Também não ansiava ser alguém enorme, com um busto à entrada de uma escadaria fria e distante. Bastava ser aquela pessoa de gestos simples (mesmo simplórios) que cumprira as funções que a Natureza lhe ditara.
Entretanto, um fio vermelho escorria-lhe pela face, recordando-lhe que acabara de adicionar ao rol um problema desta feita comezinho: estancar o sangue. Um arrepio gélido acordou-o do meio-sono em que mergulhara.
Voltou a olhar para o espelho enquanto uma força inelutável o impelia a deixar corre a água no lavatório.
Voltou às funções que se impusera enquanto homem e ao rosto da criança sardenta. Apetecia-lhe ouvir Korsakov. Afinal, não era todos os dias que tinha programa para a noite.

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