quarta-feira, outubro 04, 2006

Vento

Candido Portinari, Despejados, 1934.

Parto com a lembrança do lugar em que me fiz gente. As rugas, as mãos gastas pelo árduo trabalho do campo. As ruas empedradas em direcção ao pelourinho centro de angústias, de romarias, de funestos murmúrios. A carreira velha que une aquele pedaço de idílio ao resto do mundo-cão sobe já a custo a estrada íngreme em que a Rosário há boas décadas pôs termo a uma existência errante. As copas das árvores cochicham sobre os motivos da minha partida. Quero ver mundo, mesmo que seja para descobrir que não há mundo para além daquele microcosmo em que me enlevo todas as manhãs desde que nasci. Visto o fato de fazenda que a madrinha me deu pela Páscoa e que me serviu para acolitar o padre que por cá aparece duas vezes ao ano. A mala puída que meu pai comprou com a última cabeça de gado que lhe restava transporta pouco mais que umas calças e umas camisas andrajosas. No meio deste espectáculo de mau gosto, a Bíblia. Dentro dela as pratas de um chocolate que comi uma vez em que os tios de França vieram ver o avô que morria. Sim, é o meu avô. Está ali sentado à porta da venda e acena-me encorajadoramente. –Sempre foste o meu herói! Deste a volta a esta enxovia! –Vai, não olhes para trás! Olha que o vento sul está a levantar-se e o cheiro a terra que ele traz é força invencível para o que parte. – Sim, avô. Virei buscar-te!

2 comentários:

marta ré disse...

Depois de espreitar...ler e reflectir,gostei do que vi!!

Bom fim de semana.

Anónimo disse...

Ecos do passado, em que simples gestos eram tão marcantes na vida de cada uma pessoa.