Deparando-me com o já lido "Viver para contá-la", no cantinho de uma mesa, em posição periclitante e a pedir para ser arrumado na estante à beira dos seus semelhantes, decidi retomar aqui os fios das impressões de leituras, que deixei uns posts atrás.
A auto-Biografia de Gabriel García Márquez abre com um mote lapidar que me convenceu, de imediato, à leitura: "A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para contá-la.". Rendi-me à verdade da afirmação – quanto do que lembramos não é fruto da nossa imaginação ao rememorar o pretérito! – e acompanhei o escritor colombiano no desfiar das memórias da primeira metade da sua vida.
O livro principia com uma viagem de Barranquilla para Arataca, de Gabito e sua mãe, com o fito de concluir o negócio da venda da casa da família, mas a história começa muito tempo antes – antes de Gabo nascer, antes de seus pais se conhecerem, antes da revoada da companhia bananeira – em Arataca: "um lugar bom para viver, onde toda a gente se conhecia, na margem de um rio de águas transparentes que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos". (Op. Cit., p. 11). E reconheci logo Macondo de "Cem anos de Solidão" que o autor descreve exactamente com as mesmas palavras (Segunda frase do livro, na minha edição das Publicações Europa-America na p. 9), numa altura em que "o mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome, e para mencioná-las era preciso apontar com o dedo" (idem).
Ora, García Márquez, nesta viagem ao princípio do seu mundo, e que o marcaria indelevelmente, recolhe nostalgias "na casa fatasmal" que, aliás, acaba por não ser vendida ("A casa não se vende – disse [ a mãe de Gabo] – Façamos de conta que aqui nascemos e aqui morremos todos" – "Viver para contá-la", p. 44). Recua e começa a apontar fragmentos da sua (pré-)história . Descobrem-se as sementes de "Cem anos de Solidão" - na família do prémio Nobel de 1982 encontramos a família dos Buendía, em alguns episódios revela-se a inspiração do enredo do famoso livro (Até a personagem Rebeca que, na leitura de "Cem anos de Solidão", tanto me surpreendera por viver sem comer, alimentando-se de terra húmida do jardim e pedaços de cal das paredes, tem o seu original em Margot!)
Percebemos que a vida repleta de percalços, preenchida de aventuras foi um rico manancial para a obra do escritor. Quase que a cada retalho da sua vida está associado um poema, um conto, um romance (fiquei, por isso, com vontade de alargar o meu reduzido conhecimento da obra do escritor).
Esta autobiografia cumpre mais do que a sua (aparente) primacial função - como, aliás, todas as (auto)biografias de pessoas de valor. A leitura de "Viver para contá-la" proporciona uma tripla descoberta: a da vida de Gabo, a da obra de García Márquez, e a da história do início do século XX da Colômbia. Acompanhamos de perto e pela lente comprometida do escritor vários momentos da vida política conturbada do seu país.
Estava no local certo às horas sobressaltadas, pois encontrava-se em Bogotá para cursar Direito. Aí permaneceu, trocando, no entanto, a Faculdade (com o curso apenas iniciado) por uma vida atribulada nas efervescentes redacções de jornais. É interessante perceber as dificuldades que sentiu para seguir este percurso, sobretudo por ter de defraudar as expectativas dos pais que lhe desejavam um diploma académico e suspeitavam de uma minguada existência dedicada à escrita jornalística e literária. Curiosa é também a sua atribulada vida escolar já que traduz a assunção como verdadeira da afirmação de Bernard Shaw "Desde muito pequeno tive de interromper a minha educação para ir à escola".
O tom jubiloso com que desfia as memórias, o despudor com que revela as fraquezas (os erros ortográficos que diz cometer com grande frequência), a variedade e jocosidade dos episódios que viveu (por exemplo, aquele em que, perante a necessidade de eliminar de um livro seu as palavras "masturbação" e "presevativo", sob pena de a publicação ser rejeitada, ele negoceia com os censores a eliminação de uma só, deixando-lhes a escolha da suprimida; ou o episódio dos dois amigos que se envolvem num duelo, em que ambos ficam feridos, e acabam por morrer de pena um pelo outro), a multiplicidade de pessoas com que conviveu e nos apresenta (muitas delas com um papel de relevo na vida pública da Colômbia), ... tudo torna mais aprazível a leitura das quase 600 páginas de parte da vida do escritor colombiano. No fim, apetece concluir que se Márquez, como diz, viveu para contar, agora conta para (re)viver!
A auto-Biografia de Gabriel García Márquez abre com um mote lapidar que me convenceu, de imediato, à leitura: "A vida não é a que cada um viveu, mas a que recorda e como a recorda para contá-la.". Rendi-me à verdade da afirmação – quanto do que lembramos não é fruto da nossa imaginação ao rememorar o pretérito! – e acompanhei o escritor colombiano no desfiar das memórias da primeira metade da sua vida.
O livro principia com uma viagem de Barranquilla para Arataca, de Gabito e sua mãe, com o fito de concluir o negócio da venda da casa da família, mas a história começa muito tempo antes – antes de Gabo nascer, antes de seus pais se conhecerem, antes da revoada da companhia bananeira – em Arataca: "um lugar bom para viver, onde toda a gente se conhecia, na margem de um rio de águas transparentes que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos". (Op. Cit., p. 11). E reconheci logo Macondo de "Cem anos de Solidão" que o autor descreve exactamente com as mesmas palavras (Segunda frase do livro, na minha edição das Publicações Europa-America na p. 9), numa altura em que "o mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome, e para mencioná-las era preciso apontar com o dedo" (idem).
Ora, García Márquez, nesta viagem ao princípio do seu mundo, e que o marcaria indelevelmente, recolhe nostalgias "na casa fatasmal" que, aliás, acaba por não ser vendida ("A casa não se vende – disse [ a mãe de Gabo] – Façamos de conta que aqui nascemos e aqui morremos todos" – "Viver para contá-la", p. 44). Recua e começa a apontar fragmentos da sua (pré-)história . Descobrem-se as sementes de "Cem anos de Solidão" - na família do prémio Nobel de 1982 encontramos a família dos Buendía, em alguns episódios revela-se a inspiração do enredo do famoso livro (Até a personagem Rebeca que, na leitura de "Cem anos de Solidão", tanto me surpreendera por viver sem comer, alimentando-se de terra húmida do jardim e pedaços de cal das paredes, tem o seu original em Margot!)
Percebemos que a vida repleta de percalços, preenchida de aventuras foi um rico manancial para a obra do escritor. Quase que a cada retalho da sua vida está associado um poema, um conto, um romance (fiquei, por isso, com vontade de alargar o meu reduzido conhecimento da obra do escritor).
Esta autobiografia cumpre mais do que a sua (aparente) primacial função - como, aliás, todas as (auto)biografias de pessoas de valor. A leitura de "Viver para contá-la" proporciona uma tripla descoberta: a da vida de Gabo, a da obra de García Márquez, e a da história do início do século XX da Colômbia. Acompanhamos de perto e pela lente comprometida do escritor vários momentos da vida política conturbada do seu país.
Estava no local certo às horas sobressaltadas, pois encontrava-se em Bogotá para cursar Direito. Aí permaneceu, trocando, no entanto, a Faculdade (com o curso apenas iniciado) por uma vida atribulada nas efervescentes redacções de jornais. É interessante perceber as dificuldades que sentiu para seguir este percurso, sobretudo por ter de defraudar as expectativas dos pais que lhe desejavam um diploma académico e suspeitavam de uma minguada existência dedicada à escrita jornalística e literária. Curiosa é também a sua atribulada vida escolar já que traduz a assunção como verdadeira da afirmação de Bernard Shaw "Desde muito pequeno tive de interromper a minha educação para ir à escola".
O tom jubiloso com que desfia as memórias, o despudor com que revela as fraquezas (os erros ortográficos que diz cometer com grande frequência), a variedade e jocosidade dos episódios que viveu (por exemplo, aquele em que, perante a necessidade de eliminar de um livro seu as palavras "masturbação" e "presevativo", sob pena de a publicação ser rejeitada, ele negoceia com os censores a eliminação de uma só, deixando-lhes a escolha da suprimida; ou o episódio dos dois amigos que se envolvem num duelo, em que ambos ficam feridos, e acabam por morrer de pena um pelo outro), a multiplicidade de pessoas com que conviveu e nos apresenta (muitas delas com um papel de relevo na vida pública da Colômbia), ... tudo torna mais aprazível a leitura das quase 600 páginas de parte da vida do escritor colombiano. No fim, apetece concluir que se Márquez, como diz, viveu para contar, agora conta para (re)viver!
3 comentários:
COncordo no geral com a apreciação quanto à riqueza do conteúdo e dos estados de alma, mas quanto à forma, e por mais que dê voltas à cabeça para encontrar outra forma de o dizer...o livro é um tudo nada.....chato. Ergo.
Admito que sim. Concordo com essa análise dual substância-forma. Fui lendo o livro ao longo de vários (três) meses e intercalando-o com outros, o que diluiu a sensação de aborrecimento. Não nego que o miolo do livro foi dificil de digerir - desconhecia muitos dos contos e da poesia escrita no início da juventude de Marquez, período a que corresponde essa parte do livro - e que, por várias vezes, resisti à vontade de aabandoná-lo. Mas acabei por ser fiel a um princípio que tenho (mas que está em vias de ser revisto) de nunca deixar incompleta a leitura de um livro. E fiz bem, porque no final a impressão global colhida foi muito positiva precisamente pela "riqueza de conteúdo e de estados de alma".
Ah, só para completar e para explicar o tom mais "cor-de-rosa" do post, citando uma ideia afirmada por Marquez a dada altura no livro: também aqui (no relembrar da leitura deste livro) a nostalgia dourou as partes positivas e apagou as negativas. :-)
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