domingo, outubro 15, 2006

Pintado de Fresco (VI)

Aviso: Este é o 6.º capítulo de uma novela da vida moderna escrita a 4 mãos, entre mim e o filipelamas.

Amilcar enterrou no bolso roto das calças o post-it amarelo, depois de o revirar e dobrar em dois. Sem intenção de fazer de cupido, descobriu-lhe, de imediato, outras utilidades.
Encaixou-se no vão de uma porta, aconchegando-se ao granito gasto pelo seu corpo e que lhe servia de cama. Aqueles 20 euros eram uma grande ajuda. Mas ainda não dera a noite por terminada. Queria mais umas moedinhas e, se possível, umas notas inesperadas como aquela. Inquieto, beliscado pela sua dependência, manteve-se atento ao respirar da praça. Afagou a nota encolhida nas suas mãos sujas, secas e sulcadas. Emocionou-se com a perspectiva de ser útil pela primeira vez desde que vivia na rua. Sabia que segurava os fios que sustentavam os sonhos de gente limpa e bem-cheirosa. O sucesso daquelas pessoas mordia-o com violência. Lembrou-se de quando levava recados às clientes de sua mãe ...
Calou o vício que lhe gritava por dentro e esperou, embalado pelo barulho da música do restaurante vizinho.
A festa parecia animada. Muita música, um estrépito repetido de gargalhadas.
Apenas o vislumbre do passado, no beijo fugidio de há pouco, azulara o espírito de Margarida, criando uma surpreendente combinação com a sua indumentária. Esforçava-se com sacrifício por empurrar da memória o peso dos primeiros e únicos meses de casada. Como pudera enganar-se tanto? Ou a vida enganara-os a eles? Conhecera Rodrigo na Faculdade de Letras. Ambos estudantes. Ali se apaixonaram, ali cresceram num abraço de cumplicidades convertido solenemente em aliança. A perda do filho tão desejado, pouco tempo depois do casamento, tumultuou-lhes a existência. Enegreceu-lhes os desejos. Acinzentou-lhes os sonhos. Toldou-lhes o horizonte.
Rodrigo ruíra sob o peso da realidade. Perdera o emprego, entregara-se ao álcool e a outras substâncias. Recusara a sua mão amiga. Fora isso que jamais lhe perdoara. Não lhe permitira cumprir os votos tão ledamente assumidos. Para a saúde e para a doença, para a fortuna e para a desventura.
Nunca mais o vira desde que haviam assinado um montinho de papeis que mãos alheias lhe entregaram como sinal do fim do seu amor.
Onde estaria o Rodrigo? Perguntou-se novamente, silenciando o insulto. O arrependimento reprovava-lhe o epíteto de há pouco. Não, não era um estupor. Era um farrapo de vida.
Ela também se arrastara numa existência lusco-fuscada durante um par de meses. Fugira para Roma. Depois de um exílio de ano e meio, voltara amanhecida. Novinha como uma folha de papel reciclado. De vez em quando, ainda era atingida por estes aguaceiros de recordação. Eram frios, fortes, mas fugazes. Cada vez mais espaçados.
Para empurrar este que viera agora importuná-la, desenlaçou-se do doce abraço de Bernardo. Num acto temerário afoitou-se no karaoke. Percorreu o dossier de folhas plastificadas. A escolha era difícil. Optou pelo "Lado lunar" de Rui Veloso. "Não me mostres o teu lado feliz/ A luz do teu rosto quando sorris/ Faz-me crer que tudo em ti é risonho/ Como se viesses do fundo de um sonho"
Nem reparou no sucesso da sua actuação. Olhava com enlevo para o Bernardo e só via o seu sorriso luminoso.
Todos se uniram no refrão, que soou a hino de encerramento da festa.
As vozes líquidas espalharam-se pela noite que parecia imóvel. As janelas do Palácio ainda iluminadas. A praça adormecida. A vespa abandonada.
- Não te esqueças. Quando te quiseres desfazer desta preciosidade, diz. – estridentava Xana com os restos de baton fugidio
O barulho belisou Amilcar no seu sono. Primeiro só viu sombras. Aproximou-se e lá estava a vespa no meio do magote de pessoas e a seu lado a loira no vestido turquesa apertadinho como uma luva nova a estrear. Não teve dúvidas. Era ela a destinatária da mensagem.
- Toma lá! É para ti. E uma moedinha, faz favor. O gajo tem muita guita. O carro era uma bomba ... ele não tinha unhas para aquilo... Então, a moedinha?
- Pega lá e vai-te embora – despediu-o o Luís, com uma moeda de 50 cêntimos.
- Só isto pelo arranjinho?! – resmoneou Amilcar enquanto corria em perseguição de dois convidados da festa do palácio que lhe prometiam uma melhor colheita.
- Oh, Xana. Sempre a fazer estragos! – atirou-lhe Margarida.
- Oui, c`est moi. Deve ser o presidente da Vince ... Cruzei-me com ele há pouco. Deixou a porta do elevador fechar-se na minha cara. Nada cavalheiro...
Olhou para o post-it. Os últimos números haviam saído a custo com uma tinta desbotada.
- Uhm... o Dr. Gustavo cansou-se da Madalena?
- Aquela mulher cansa qualquer um – ripostou Luís.
As cabeças voltaram-se todas para ele.
- Não que o saiba por experiência própria... Diz-se ...
- Bem, isso tem de ser averiguado, noutra altura... que se faz tarde.
Por entre beijos e abraços o grupo foi-se despegando.
Na boleia até ao parque da Alfândega, Margarida ziguezagueou propositadamente por entre os trilhos do eléctrico. Bernardo enroscou-se mais, num abraço de segurança.
- Então, gostaste do passeio? – brincou Margarida, enquanto via a lua a bailar no soalho encerado do rio.
- Dentro do género. Uma espécie de desporto radical!
- Radical? Estás muito mal habituado, flor de estufa. - e pousou o olhar num barco rabelo que baloiçava exausto na outra margem do Douro.
- Flor de estufa, eu? Dá-me uma oportunidade. Deixa-me mostrar o meu lado lunar.
Sem esperar resposta enfiou-lhe uma pulseira verde no pulso. Leu Dj Good Vibes na discoteca Vogue. No dia seguinte.
- E é desta forma que pensas fazê-lo? ... uhm... bem, vou ter de descobrir roupa que combine com esta fluorescência!
Margarida arrancou com o sorriso de Bernardo estampado na retina.

Mário dormia um sono intermitente. As horas escorriam lentas.
O percurso pacificara-o. Também pudera. Quase galgara o passeio! O susto obrigara-o a acalmar. Ao entrar em casa, o silêncio e a escuridão terminaram a tarefa. Foi invadido por um torpor.
Deitou-se, evitando a censura do espelho.
O telemóvel, que jazia entre a "Criação do Mundo" e o cinzeiro, remexeu-se várias vezes. Afónico arquivou na sua memória mais uma chamada perdida.

4 comentários:

Joaninha disse...

Gostei da interrogação "Como pudera enganar-se tanto? Ou a vida enganara-os a eles?" O eterno dilema. Entre assumir o erro ou atirá-lo para um qualquer Destino.
Fico à espera do próximo capítulo!!!

filipelamas disse...

Gostei da densidade que colocaste nos personagens. Já os entendemos melhor, o que nos permite compreender atitudes e emoções de outros episódios. Adorei o modo como "aproveitaste" o Amílcar. Como sempre, o próximo capítulo vai ter de ser muito pensado...

Anónimo disse...

O que é prometido é devido. E RTP cumpriu: gostei muito do tom poético que deu a este novo capítulo.
Por outro lado, foi realmente surpreendente a forma como Bernardo se propôs mostrar o seu «lado lunar»!
Resta agora esperar por saber como vai Filipelamas arrancar Margarida da sua "existência lusco-fuscada" e dar-lhe um novo amanhecer...

rtp disse...

Cara Joaninha, compreendeste bem o dilema e expressaste-o melhor. :-) Também eu espero pelo próximo episódio!
Ouviste, filipelamas? Estamos à espera do próximo episódio!!!!! E nada de desculpas, e de exigências de tempo para pensar. Ainda bem que gostaste da "densidade das personagens". Tinhamos (temos) de lhes dar substracto. Aliás, não sou eu que as construo. São elas que se revelam. Eu até já as vi no supermercado e sei qual é o seu cabaz de compras! :-)
Caríssima rocky. Os teus elogios (exagerados, é certo) deixam-me MUITO feliz. Ainda bem que sentiste poesia neste capitulo. Significa que cumpri, de facto, o que havia prometido. :-)