domingo, maio 27, 2007

Post scriptum - "Carta ao Pai", Franz Kafka


Franz Kafka, Carta ao Pai, Almargem do Bispo: Coisas de Ler, 2007.
Preço: € 9.50

Escrita em Novembro de 1919, Carta ao Pai é um manifesto edipiano em que Kafka esquizofrénico (1883-1924) encontra algo ou alguém em quem depositar toda a sua fúria: diante de ti perdi toda a confiança em mim; em contrapartida, recebi uma culpabilidade infinita (p. 58). O ódio ao progenitor - na verdade, mais admiração secreta e profunda inveja - é o escape essencial para Kafka-homem viver consigo próprio. De outro modo, não projectando para fora de si a culpa pelos males que o assolam e que nunca o deixaram ter a paz de espírito que, contudo, porventura, não o teria transformado no escritor que foi, Kafka morreria acto contínuo à primeva percepção de consciência.
Hermann é apresentado como um pai ditador, desprezando tudo o que o filho faz, não faz, diz ou não diz, as suas amizades, os seus gostos, o projecto de futuro que traça, o abandonar do negócio familiar para que estaria predestinado. O filho retrata-se ainda como o fraco que o pai desejava fora forte, o apoio em relação a quezílias familiares que nunca foi; ao invés, o pai vê no seu descendente um aliado para os devaneios das irmãs deste último.
O medo com que a carta inicia depressa alastra para o medo dos trabalhadores de Hermann em relação a um tirano empregador que atira caixas para o chão e apelida os seus colaboradores de inimigos pagos (p. 44). O próprio acto da escrita é apresentado como um paradoxo composto por uma pseudo-libertação e um hino à figura paterna (Kafka colocava os seus manuscritos na mesinha-de-cabeceira do pai e aguardava um comentário. Um dia ele chegou: Agora és livre. - p. 69), ao redor de um medo e repulsa pelo próprio corpo que, no limite, conduziria à hipocondria de Franz, à escolha (?) da profissão – apresentada como o que de mais perto existe do “não fazer nada” – e até mesmo da mulher com quem partilhar o leito.
O tom acre, azedo, ressabiado, não torna a leitura uma tarefa agradável, assim reforçando o modo como esta específica relação paterno-filial se desenrolaria. O estilo está, pois, ao serviço da mensagem.
Pena são, na edição da Coisas de Ler, da responsabilidade de Ana Nereu, os erros de sintaxe e de pontuação estranhamente avultados.
Termino com uma deliciosa referência de Franz Kafka ao Direito – curso que acabaria por tirar (1906) sem qualquer pingo de gosto –, bem demonstrativo da falta de interesse que esta ciência (?) pode ter: Portanto, estudei Direito. Isso significou que durante alguns meses antes dos exames, afectando consideravelmente os nervos, alimentei-me intelectualmente de letras de serradura que, além disso, tinham sido previamente mastigadas para mim por mil bocas.

5 comentários:

rtp disse...

Interessante a mensagem final, tão apropriada à época que muitos vivem! :-)

White Castle disse...

Este post fez-me ir buscar um livro que muito vagarosamente vou lendo, "Kafka, para uma Literatura Menor", da Assírio & Alvim. Sobre esta Carta, narra o livro:

"... o interesse da carta situa-se num certo deslize; Kafka passa de um Édipo de tipo neurótico, em que o pai bem-amado é odiado, acusado, declarado culpado, a um Édipo muito mais perverso, que cai na hipótese da inocência do pai..."
" A questão do pai não se trata de saber como tornar-se livre em relação a ele (questão edipiana), mas como é que se encontra um caminho onde ele não encontrou nenhum"

Este post aguça o apetite para leituras mais longas...

joaquim.guilherme.blanc disse...

Há coisas engraçadas. Aconteceu, há coisa de dois anos, pegar no carta ao pai depois de ter acabado um livro do hervÉ bazin que aborda a relação de um filho com a mãe, em tom autobiográfico, creio. O título, "de víbora na mão", ilustra a bonita relação do pequeno com a mãe...
De tal forma que quando comecei a ler a carta ao pai, do kafka, decidi parar, já não tinha estômago para outra dose...

ml disse...

"letras de serradura" de facto parece-me uma expressão adequada à época... x)

Claudia Sousa Dias disse...

Eu sei que é uma vergonha uma crítica literária que se preze nunca ter lido nada de Kafka nem de Dostoievski!

Mas é a pura verdade!

Só não sei por onde começar...



CSD