Apontamento
A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá!
Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.
Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.
Não se zanguem com ela.
Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?
Olham os cacos absurdamente conscientes,
Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.
Olham e sorriem.Sorriem tolerantes à criada involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Olham e sorriem.Sorriem tolerantes à criada involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.
Álvaro de Campos
4 comentários:
é por estas e por outras que é o meu pessoa preferido :)
"A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco."
Quem me dera ser um pedacinho desse caco de que fala Pessoa!
A foto está fantástica e muito bem escolhida para ilustrar o poema!
Duas rubricas numa só: RTP em grande!!
Gosto tanto de Álvaro de Campos... De notar a excelente escolha da imagem - "escada excessivamente abaixo"!
Já agora e depois do repto que filipelamas lançou a propósito de outra foto e de uma "mão malandra" que lá aparece: nesta foto das escadas, em que eu "excessivamente acima" capto o momento, são visíveis várias outras pessoas... malandrinhas! :-)
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