Adaptando um original de Zoran Zivkovic, o
T&L em peso esteve ontem numa representação que anunciara – «
Biblioteca Infernal» –, levada a efeito pelo «DireitoàCena», Grupo de Teatro da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.
A singularidade e beleza únicas do espaço que serviu de cenário – a Biblioteca da Faculdade – foram solo fecundo para um texto que nos interroga de modo profundo. A leitura,
rectior, a ausência dela, se entendida como um crime capaz de conduzir um ser humano à condenação infernal, aplicada em «medida de coacção» exactamente proporcional à inexistência de hábitos de leitura do arguido, de imediato condenado é, de per se, uma ideia genial. Associar-lhe a reflexão de que «todas as épocas têm o seu inferno» e rejeitar
clichés sobre esse local demoníaco, fazendo-nos ponderar se as nossas vidas, tal como as vivemos (ou não vivemos), são já, elas próprias, um inferno, encerra uma mensagem que não pode senão deixar-nos inquietos.
Se a isto juntarmos poesia e prosa dos mais representativos Autores nacionais e estrangeiros, desde «As
Farpas» de Ortigão e Eça, à «Biblioteca» de Umberto Eco, passando pelo inevitável Pessoa em «Ai que prazer» e as deslumbrantes «Queixas e imprecações de um condenado à morte», de Ary dos Santos, ditos por actores
amadores, no sentido de verdadeiros
amantes da arte de representar e de dizer literatura, então a sala de Penal encheu-se, por entre exasperadas perspectivas ético-retributivas iniciais, de um krausismo regenerador (aqui estavam eles, respondendo às «Farpas»…).
O Grupo de Teatro que já nos habituou a um magnífico brinde de Kafkfa em «O Processo» e a uma «Medeia» de assinalável nível é uma certeza. E não o digo quase
a domino, pelos laços que me ligam a quase todos os actores. Quem, no final da adaptação de Zivkovic, de forma tão comovente, passa a mensagem de que os julgadores são, por rectas contas, seres iguais ao condenado, também sentenciados a uma eternidade assustadora, faz do teatro uma forma de expressão de sentimentos que doem, numa dor gostosa.
Tanto que cheguei a casa e não pude conter a escrita numa catarse de algo que trouxe (ou que já se encontrava) dentro de mim, ao som pungente da
Suite n.º 3, em Dó maior, BWV 1068, de Johann Sebastian Bach.