As Vidas dos OutrosDas Leben der AnderenRealização de: Florian Henckel von Donnersmarck
Interpretações: Ulrich Muhe, Martina Gedeck, Sebastian Koch
ALE, 2006, Cores, 137 min.
Já há muito tempo que não via um filme que me agradasse tanto. Fora ao cinema a medo. O Óscar para melhor filme estrangeiro fazia-me temer o pior, depois de ter visto
"The Departed" a arrebatar o prémio da Academia para melhor filme. A história de polícias e bandidos não me convencera. As superiores interpretações do veterano Jack Nicholson e de um surpreendente Leonard Dicaprio não foram suficientes, na minha opinião, para sustentar o filme e erigi-lo a um plano de tal destaque. Ainda mais em detrimento do preferível
"Babel", com o seu
puzzle de histórias (só a passada no Japão me pareceu claramente deslocada e anódina) arrumadas de modo original por um Alejandro González-Iñárritu que assim fecha uma interessante trilogia.
Uma
sms apologética do filme, um punhado de críticas abonatórias e o decisivo argumento da muito útil oportunidade de treinar o ouvido para a língua de Goethe venceram os meus medos. E ainda bem que tal aconteceu.
"Das Leben der Anderen" destila humanismo.
A história começa em 1984. O muro, ainda, divide as duas Alemanhas, abafando aqueles que
vivem na sociedade
orweliana da parte dita democrática. Uma rede de informações é tecida por muitos (tantos!) cidadãos pacatos (
estranhamente "normais") que se dedicam, submissa e acomodadamente, a ver, ouvir, e relatar todos os passos de vizinhos e companheiros de trabalho. A
ler a vida dos outros, à procura de passagens dissonantes com a narrativa que o regime silenciosamente impunha, num texto ditado e que todos deviam repetir.
O Capitão
Gerd Wiesler (
Ulrich Muhe) destaca-se da mancha anónima de informadores. Convicto elemento
Stasi, cumpre escrupulosamente as suas funções. Fareja os recantos das vidas daqueles que lhe parecem suspeitos – e poucos são os que escapam ao olfacto apurado deste profissional treinado. Como académic
o reputado ensina os seus métodos de interrogatório aos novatos que vão sendo amestrados. Recebe, por isso, com agrado a incumbência de seguir a vida de um dramaturgo famoso,
George Dreyman (
Sebastian Koch) que vive em harmonia, pelo menos aparente, com o poder instituído. Não são intuitos interesseiros de progressão nos quadros do partido que o acicatam – como acontece com o oficial de alta patente
Anton Grubitz (Ulrich Tukur), seu colega de escola - nem outros vis desejos mundanos – como os apetites carnais do Ministro da Cultura Bruno Hempf pela actriz
Christa-Maria Sieland (Martina Gedeck), companheira de Dreyman. Move-o, apenas, a superior missão de salvaguarda do regime que aprova.
Wiesler segue a vida de Dreyman. Assiste ao seu desenrolar, sentado a uma secretária com auscultadores atentos e écrans vigilantes. Perscruta-a até aos mais ínfimos pormenores. Vive-a, à míngua de uma que lhe pertença. A vida de Dreynman inunda a sua. Ocupa o vazio que o habita. É ela que lhe oferece as suas únicas emoções. Só tem a vida de Dreynmar e de Sieland.
A vida dos outros. Agarra-se, então, a ela. Procura remendá-la. Para isso trai o regime, esconde-lhe informação. Deixa que Dreyman – sem que este suspeite da vigilância a que é sujeito e da conivência com que é brindado - publique um artigo altamente comprometedor no ocidental "
Der Spiegel". Enquanto o texto é preparado em segredo na casa do escritor, Wiesler forja, para os relatos oficiais, uma "falsa" peça que o dramaturgo estaria a escrever para comemorar os 40 anos da RDA. Cria uma trama ficcional em que Dreyman desempenha um papel sem o saber.
O que o leva a manipular o curso de acontecimentos? Um coração que entretanto começara a bater? Um imperativo ético que, entretanto, o conquistara? A
soberba interpretação de Ulrich Muhe, que poupa em artificios e exageros, deixa espaço para a suposição. A derrocada do pétreo e insensível
stasi dá-se simbolicamente aquando da sua conversa com a criança no elevador. Aí transige com a sua férrea actividade persecutória. Nasce um novo Wiesler. No entanto, a pele permanece a mesma. Sentimo-lo, percebemo-lo, porque Ulrich Muhe no-lo dá a conhecer quase imperceptivelmente. Não precisa de palavras, esgares ou olhares mais impressivos. À transparência, lemos-lhe a alma renovada.
Com o incumprimento do dever que o vinculava face ao regime, liberta-se. Reganha a sua vida, recupera a sua humanidade. Conquista o seu direito à "
Sonata para um homem bom".
E o filme podia ser só isto. Mas é muito mais. Deixa-nos muitos pontos para reflectir. Dele podemos tirar muitas lições para a sociedade controladora em que vivemos. Ensina-nos a estar de atalaia para novas formas de ditadura
informacional que se vão instalando, a pouco e pouco.
O filme tem, também, o mérito de não cometer o pecado que podia ser capital - o encontro
sentimentalão entre o
stasi arrependido e o vigiado agradecido. Salva-se
in extremis. O relato da história passada, escrita pelo punho de Dreynman, em livro publicado já após a queda do muro de Berlim, serve os intuitos apaziguadores. Basta-nos que, na última cena do filme, Wiesler - aquele que um dia fora o agente „HGW XX/7" - com um leve sorriso no rosto, após comprar o livro, o reclame do vendedor despido de embrulhos supérfluos "por ser para ele" a sonata nele contida.