sábado, março 10, 2007

Regularidade


Woman in the Wilderness, Alphonse Mucha, 1923, Mucha Museum, Praga.

“A regularidade matemática aniquila o espírito”.
Não se recordava já onde lera a frase, mas retivera-a numa espécie de sono letárgico ao pé daquela região do cérebro que, volta e meia, nos trai e explode qual vulcão libertando magna incandescente. Recostara-se e fechara as persianas da mente.
A vida que tinha diante dos olhos (talvez por estarem momentaneamente privados da luz de Março que lá fora despontava) aparecia-lhe como uma sucessão de algumas vitórias salpicando falhanços monumentais. Habituara-se a conviver com os falhanços. Contudo, a tal ideia de regularidade agonizava a certeza a que sempre aspirava.
“E se os falhanços forem, ao fim e ao cabo, pedaços de um percurso que é necessário viver? Mas este não é o percurso habitual. Lá está a regularidade…”.
Semi-abrindo os olhos ganhava consciência do espaço turvo em que habitara. Como se uma aparição lhe bendissesse o percurso e o dotasse de um entendimento outrora tolhido.
Ver as aparentes derrotas como etapas. Que não têm de ser iguais à regularidade. Porquê tanto medo da diferença? Será o receio do estigma, do afastamento, ou pura e simplesmente a cobardia de aceitar e afirmar que somos mais felizes ao ouvir aquela música antiga de que ninguém fala, ao invés do sucesso do momento?
Regularidade e irregularidade. Afinal quem as define? A maioria. E se esta maioria, em um dia solarengo, decidisse vencer hipocrisias e deixar cair as máscaras? A antiga irregularidade passaria a ser a imperante regularidade. Tudo com a paz do costume.
O telemóvel acordou-o do torpor em que estava imerso. O convite por sms não lhe agradava. Acto contínuo, escreveu a costumada resposta, invocando compromisso anterior imaginário. Preparava-se para enviar a mensagem quando o seu dedo gelou.
“A regularidade matemática aniquila o espírito”.
“Obrigado, mas não me apetece.” O ecrã do telemóvel reflectia o sorriso tranquilo que agora ostentava.

3 comentários:

verde disse...

Muito bem escrito, gostei muito. Fez-me pensar sobre o que é a regularidade. Um dia ouvi o Júlio Machado Vaz falar sobre esta questão da regularidade na forma de monotonia. Que muitos pacientes se queixavam que a monotonia tinha invadido as suas vidas, que tinham vidas demasiado regulares, mas depois quando lhes pedia que descrevesse um seu dia, um dia normal, este era acelerado, quase frenético. O que é então a regularidade e como conduz à monotonia? Não será esta apenas produto do nosso filtro, do modo único como cada um de nós vive e vê a vida e o que nos rodeia?

Depois há neste texto a questão deliciosa de como precisamos de sentir que tudo na vida faz sentido, particularmente as derrotas. Interessante. Acredito que apenas o desconforto nos faz mudar. Que mudança é difícil por mais pequena que seja, senão vejamos o difícil que é o simples acto de escrever com a mão contrária à que habitualmente usamos. O desconforto obriga à mudança e é nos momentos mais difíceis que mais crescemos como seres humanos. Depois de períodos difíceis o homem anseia pela regularidade, mas, olhando para trás percebe que foi nos momentos de quebra dessa regularidade que se deram as suas maiores transformações.

Parabéns pelo texto.

rtp disse...

Belo texto! Poesia em prosa (como, pessoalmente, mais aprecio)! Profundas reflexões aveludadas num tecido de tonalidades "irregulares"! Muitos fios desta meada emaranhada que filipelamas aqui nos deixa podiam ser o mote de inúmeros comentários! O da verde é disso um excelente exemplo!
Quanto à "ditadura das maiorias", vide um texto lindíssimo (como aliás todos os que lá escreve!) de domingonomundo, no blog interrupções, intitulado "Da falibilidade das maiorias". Um apelo a abandonar os "guarda-chuvas"!
(Não posso deixar de verificar que o menino descobriu uma renovada desculpa para justificar o facto de os seus conhecimentos (rectius, gostos) musicais terem ficado parados no início do século passado! :-))))

Mozart S Lino disse...

Muito importante achado.
Ao engavetar o raciocinio em "regularidade" atribui-se (a si proprio) atitudes imutaveis.
Tal ato em si justificaria a postulada atitude do dedo que buscou no fundo do bau o rebuscado ato.
Previsao: A regularidade em sua nebulosidade encotrara a luz.