quinta-feira, março 22, 2007

Ferrolho

Um buraco na estrada
Só reclama um desvio de trajecto.
Um buraco no céu
É fresta divina que solapa o sol.
Um buraco negro
É coisa irreal de livro de astronomia.
Um buraco na tua meia
É descuido cúmplice de afago.
Mas um buraco no peito
É dor lancinante
Que não sara,
É bicho,
É mal,
É coisa ruim,
É o diabo em forma de gente,
É gente que faz o diabo.
O esterno que guarda o coração
Abre-se escancarado
Qual cofre arrombado
Em noite de negrura vestida
E verte-se inteiro para ti.
Ao invés de amparares a seiva,
Deixa-la escoar-se pelo abismo
Da tua indiferença.
“Olha, o líquido que rejeitaste
Tornou-se meio vital para outrem!”
“Quem é esse outrem?”, perguntas tu desdenhosa.
Eu só, só eu.
Quem mais querias
Se o ferrolho da tua porta
Esteve sempre corrido,
Lacrado, amuralhado?
Batia uma vez mais em vão.
O eco surdo da madeira
Refulgia na opacidade dos meus ouvidos,
Doirando o “nada” em “tudo”,
Ou, pelo menos, em “talvez”.
Hoje descobri que a dor varia:
Ela é directamente proporcional
À força do batente
E do ferrolho do teu corpo.
Da tua portada já me apartei.
Deixei agora o teu terraço.
Amanhã chegarei ao passeio
Sobranceiro à tua casa.
Aí, nesse momento,
Transformo-me em caracol
E carrego a tua casa nas minhas costas,
Sem esquecer porta, ferrolho e batente.


F.L.


3 comentários:

Anónimo disse...

O fechar e o abrir é como o dia e a noite depende das circunstâncias, do tempo e da hora assim como o carregar e ser solidário da pessoa que é....bonita reflexão...Um abraço grande

rtp disse...

Adorei o poema! Muito belo e inspirado! Eivado de sofrimento sublimado!

Serenidade disse...

Amei esta forma de expressar este sentir que tanta vezes nos bate à porta e temos de o deixar entrar porque afinal de contas outrem não quer abrir a porta para que nós entremos.

Sorriso Primaveril.

Beijos de luz serena