O objecto era pequeno: talvez quinze centímetros de altura por dez de largura. Senti-lhe o peso. Mais tarde lembrar-me-ia de que era demasiado leve para as pesadas recordações que carregava. Era um livro de capa dura, revestida de um tecido áspero e gasto cujo rosa coçado apenas deixava adivinhar o vermelho vivo de outros tempos.
Abri-lo sufocou-me, tal foi a intensidade com que a nuvem de pó me procurou e se abrigou nas minhas narinas. Depois de me recompor, descobri que as folhas pautadas fervilhavam de acontecimentos e revelavam prioridades sucessivamente revistas, a avaliar pelo frenesim das correcções de tinta branca e das correspondentes substituições.
As linhas eram de um azul parecido com o dos cadernos da escola primária. O canto inferior de todas as folhas estava torcido e sujo, o que só podia significar que esse ano fora vivido até ao último dia.
Um de Janeiro de 1973 cheirou-me a um entusiasmo insofreável e salpicou-me de perfume de alfazema: as tarefas transbordavam esse dia, invadindo as páginas seguintes com letra sôfrega e resoluta: “visitar todos os Domingos a mamã no lar”, “aprender a distinguir os verdadeiros amigos dos outros”, “mandar encolher a saia de roda”, “tomar uma decisão quanto ao Carlinhos”, “mostrar ao Chefe o meu valor”, “reservar os sábados para mim”, “voltar a escrever”, e por aí fora. Quinze de Março. Flores de urze marcavam esta página. Não é fácil encontrá-las por estes lados: planta tipicamente transmontana. O primeiro indício sério.
Abri-lo sufocou-me, tal foi a intensidade com que a nuvem de pó me procurou e se abrigou nas minhas narinas. Depois de me recompor, descobri que as folhas pautadas fervilhavam de acontecimentos e revelavam prioridades sucessivamente revistas, a avaliar pelo frenesim das correcções de tinta branca e das correspondentes substituições.
As linhas eram de um azul parecido com o dos cadernos da escola primária. O canto inferior de todas as folhas estava torcido e sujo, o que só podia significar que esse ano fora vivido até ao último dia.
Um de Janeiro de 1973 cheirou-me a um entusiasmo insofreável e salpicou-me de perfume de alfazema: as tarefas transbordavam esse dia, invadindo as páginas seguintes com letra sôfrega e resoluta: “visitar todos os Domingos a mamã no lar”, “aprender a distinguir os verdadeiros amigos dos outros”, “mandar encolher a saia de roda”, “tomar uma decisão quanto ao Carlinhos”, “mostrar ao Chefe o meu valor”, “reservar os sábados para mim”, “voltar a escrever”, e por aí fora. Quinze de Março. Flores de urze marcavam esta página. Não é fácil encontrá-las por estes lados: planta tipicamente transmontana. O primeiro indício sério.
14 comentários:
Assumindo o risco do "cliché", bebi cada uma das palavras que escreveste! Penetra-as a mestria da escrita e um sentimento forte que transborda das azuis linhas rectilíneas da agenda. Mal posso esperar pelos restantes dias desse ano que escolheste. Estou sôfrego de 2 de Janeiro e anseio saber que indício sério é esse que contém Março e que traz a urze à liça.
Sinceros parabéns, Amiga Rocky!
Um texto carregado de recordações interiorizadas, que se adivinham...
Bj ;)
Uma coisa a Rocky não pode mais negar: há uma poetisa dentro dela! Adorei! Muito bem! Deliciosa descrição da agenda! Todo o texto é excelente, mas destacaria: "Mais tarde lembrar-me-ia de que era demasiado leve para as pesadas recordações que carregava"!
E não podia deixar passar em branco a surpresa que me causou saber que a Rocky é quase da idade do filipelamas! SOCORRO! Encontro-me rodeada de dinossauros (dinossaurios, para o filipelamas)! :-))))
Não entremos em exageros!: quase da idade de filipelamas? - ainda me faltam uns bons anos-luz para lá chegar... com o devido respeito pela sua vetusta idade;-)
Quanto ao resto, como dizia a fadista: "obrigada, obrigada...".
Excelente texto.
CSD
Serei superior aos vossos comentários foleiros e direi como o mítico (do meu tempo:)) Bobby Robson: "no comments":))
gzalbpfCara Rocky, o texto que nos deixou é o retrato fiel daqueles momentos em que descobrimos uma agenda ou diário antigos.
Apesar da minha curta existência também já vivi - poucos! - momentos desses, e é engraçado como à distância de um mês ou de alguma(s) tarefa(s) realizada(s) tudo nos parece "overrated"!
Ficamos com a secreta convicção, e até alguma vergonha, de que demos demasiada importância ao que quer que fosse que se nos afigurava, naquele momento, avassalador! Em suma, não há nada menos prioritário do que as prioridades.
Quanto à urze, só um(a) aborígene sabe do seus poderes secretos...
PS: As plantas tipicamente transmontanas não são assim tão raras nestas paragens...
Não foi a RTP que fez 50 anos?!
Basta de denegrirem a imagem de Filipelamas que tanto contribuiu para o desenvolvimento deste país ao presidir à Comissão de redacção da Lei da Boa Razão!
Já não há respeito!
Thumbelina: é a velha ideia de que o tempo faz-nos relativizar os problemas do passado. Quanto à planta transmontana em questão: o texto não revela o local onde se encontra a pessoa que descobriu a agenda de 1973... outro mistério!
filipelamas: até o Marquês!!!!!!!!;-)
Pudessem os actuais dadores de leis ostentar o cuidado e a minúcia que filipelamas empregou na construção da "recta ratio jusnaturalista". Dir-se-ia estarmos perante a incarnação de Justiniano (ou terão sido contemporâneos?).
Eu sou dois anos mais novo.
EHEHEHEH
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