quarta-feira, março 14, 2007

Curtas sobre Metragens

As Vidas dos Outros
Das Leben der Anderen
Realização de: Florian Henckel von Donnersmarck
Interpretações: Ulrich Muhe, Martina Gedeck, Sebastian Koch
ALE, 2006, Cores, 137 min.

Já há muito tempo que não via um filme que me agradasse tanto. Fora ao cinema a medo. O Óscar para melhor filme estrangeiro fazia-me temer o pior, depois de ter visto "The Departed" a arrebatar o prémio da Academia para melhor filme. A história de polícias e bandidos não me convencera. As superiores interpretações do veterano Jack Nicholson e de um surpreendente Leonard Dicaprio não foram suficientes, na minha opinião, para sustentar o filme e erigi-lo a um plano de tal destaque. Ainda mais em detrimento do preferível "Babel", com o seu puzzle de histórias (só a passada no Japão me pareceu claramente deslocada e anódina) arrumadas de modo original por um Alejandro González-Iñárritu que assim fecha uma interessante trilogia.
Uma sms apologética do filme, um punhado de críticas abonatórias e o decisivo argumento da muito útil oportunidade de treinar o ouvido para a língua de Goethe venceram os meus medos. E ainda bem que tal aconteceu. "Das Leben der Anderen" destila humanismo.
A história começa em 1984. O muro, ainda, divide as duas Alemanhas, abafando aqueles que vivem na sociedade orweliana da parte dita democrática. Uma rede de informações é tecida por muitos (tantos!) cidadãos pacatos (estranhamente "normais") que se dedicam, submissa e acomodadamente, a ver, ouvir, e relatar todos os passos de vizinhos e companheiros de trabalho. A ler a vida dos outros, à procura de passagens dissonantes com a narrativa que o regime silenciosamente impunha, num texto ditado e que todos deviam repetir.
O Capitão Gerd Wiesler (Ulrich Muhe) destaca-se da mancha anónima de informadores. Convicto elemento Stasi, cumpre escrupulosamente as suas funções. Fareja os recantos das vidas daqueles que lhe parecem suspeitos – e poucos são os que escapam ao olfacto apurado deste profissional treinado. Como académico reputado ensina os seus métodos de interrogatório aos novatos que vão sendo amestrados. Recebe, por isso, com agrado a incumbência de seguir a vida de um dramaturgo famoso, George Dreyman (Sebastian Koch) que vive em harmonia, pelo menos aparente, com o poder instituído. Não são intuitos interesseiros de progressão nos quadros do partido que o acicatam – como acontece com o oficial de alta patente Anton Grubitz (Ulrich Tukur), seu colega de escola - nem outros vis desejos mundanos – como os apetites carnais do Ministro da Cultura Bruno Hempf pela actriz Christa-Maria Sieland (Martina Gedeck), companheira de Dreyman. Move-o, apenas, a superior missão de salvaguarda do regime que aprova.
Wiesler segue a vida de Dreyman. Assiste ao seu desenrolar, sentado a uma secretária com auscultadores atentos e écrans vigilantes. Perscruta-a até aos mais ínfimos pormenores. Vive-a, à míngua de uma que lhe pertença. A vida de Dreynman inunda a sua. Ocupa o vazio que o habita. É ela que lhe oferece as suas únicas emoções. Só tem a vida de Dreynmar e de Sieland. A vida dos outros. Agarra-se, então, a ela. Procura remendá-la. Para isso trai o regime, esconde-lhe informação. Deixa que Dreyman – sem que este suspeite da vigilância a que é sujeito e da conivência com que é brindado - publique um artigo altamente comprometedor no ocidental "Der Spiegel". Enquanto o texto é preparado em segredo na casa do escritor, Wiesler forja, para os relatos oficiais, uma "falsa" peça que o dramaturgo estaria a escrever para comemorar os 40 anos da RDA. Cria uma trama ficcional em que Dreyman desempenha um papel sem o saber.
O que o leva a manipular o curso de acontecimentos? Um coração que entretanto começara a bater? Um imperativo ético que, entretanto, o conquistara? A soberba interpretação de Ulrich Muhe, que poupa em artificios e exageros, deixa espaço para a suposição. A derrocada do pétreo e insensível stasi dá-se simbolicamente aquando da sua conversa com a criança no elevador. Aí transige com a sua férrea actividade persecutória. Nasce um novo Wiesler. No entanto, a pele permanece a mesma. Sentimo-lo, percebemo-lo, porque Ulrich Muhe no-lo dá a conhecer quase imperceptivelmente. Não precisa de palavras, esgares ou olhares mais impressivos. À transparência, lemos-lhe a alma renovada.
Com o incumprimento do dever que o vinculava face ao regime, liberta-se. Reganha a sua vida, recupera a sua humanidade. Conquista o seu direito à "Sonata para um homem bom".
E o filme podia ser só isto. Mas é muito mais. Deixa-nos muitos pontos para reflectir. Dele podemos tirar muitas lições para a sociedade controladora em que vivemos. Ensina-nos a estar de atalaia para novas formas de ditadura informacional que se vão instalando, a pouco e pouco.
O filme tem, também, o mérito de não cometer o pecado que podia ser capital - o encontro sentimentalão entre o stasi arrependido e o vigiado agradecido. Salva-se in extremis. O relato da história passada, escrita pelo punho de Dreynman, em livro publicado já após a queda do muro de Berlim, serve os intuitos apaziguadores. Basta-nos que, na última cena do filme, Wiesler - aquele que um dia fora o agente „HGW XX/7" - com um leve sorriso no rosto, após comprar o livro, o reclame do vendedor despido de embrulhos supérfluos "por ser para ele" a sonata nele contida.

12 comentários:

Anónimo disse...

Subscrevo. E muito muito boa a anedota sobre o Honecker e o sol!

Joaninha disse...

Como já deves ter notado, sou muito cinéfila, daí que todas as críticas a um filme leia com muito interesse.
Ainda não vi esse, mas gostei da descrição.
Quanto ao Departed, achei que foi um excelente filme e concordei com o prémio... Talvez por já há muito ter-me rendido a Scorsese!

M. disse...

Tenho que ver este filme. Imperdoável!
(Gratos pela visita ao Fotoescrita, eu e o S.)

rtp disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
rtp disse...

A anedota é, de facto, muito boa! :-)
Cara joaninha, que a menina é uma cinéfila e uma cinéfila de mão-cheia, nota-se à distância. Não tens como negar! :-)
Quanto ao "Departed" achei-o um filme bom, de muita qualidade, mesmo. Mas nunca o escolheria para melhor filme. Uma película para merecer o epíteto de melhor entre as demais (e esta eleição é uma tarefa, já por si discutível e, talvez de impossível realização), na minha opinião, tem de acrescentar algo ao espectador. E a verdade é que eu, quando vi o "Departed", saí da sala de cinema e deixei lá a história. Arrumei-a no arquivo cinematográfico sem dar muito trato ao pensamento. Sem negar que é um filme de muita qualidade, e concordando que Scorsese já merecia um prémio (não discuto, por isso, o de melhor realizador), julgo que o óscar de Melhor Filme sobre-valoriza o conteúdo.
Já "A vida dos outros" interpelou-me como espectadora. Tocou-me e enriqueceu-me. E digo-o sem querer significar que este filme é uma obra-prima, que não o é! É apenas um bom filme!
Resta-me dizer que queria ter visto o "Little Miss Sunshine" que tu tanto elogiaste mas não consegui. A estadia nas salas de cinema do Porto foi fugaz apesar do óscar para melhor actor secundário.

Anónimo disse...

O filme foi-me aconselhado por uma "nativa" ainda antes dos óscares! Devo dizer que só fui vê-lo depois um pouco induzida pelo óscar atribuído e sem grandes expectativas, contudo, foi dos filmes que mais gostei até hoje.

Também gostei da piada do Honecker, apesar da tradução do filme, talvez porque fosse uma tradução em segunda mão - alemão-inglês-português - não ser muito boa.

Adorei a banda sonora e, constará provavelmente de um novo projecto que a "Thumbelina Records" apresentará ao Conselho de Administração do T&L (que para já fica no segredo dos deuses...).

rocky disse...

Eu também gostei muito do filme. Aliás, ainda não consegui libertar-me dele. Concordo com a tua opinião sobre a expressividade do olhar quieto do stasi... Já agora, adorei esta crítica!

verde disse...

Também adorei o filme. Fui igualmente sem grandes expectativas mas vim encantada e já por muitas vezes ao longo da semana dei comigo a pensar em cenas do filme. rtp, não percas o little miss sunshine, também gostei imenso.

Anónimo disse...

excelente texto. Soltou o sentimento.Isso é belo.

Penso que o stasi não estava "vazio" : acreditava na sua missão, tinha uma causa.
Trairam-na. Então, passou de uma causa para outra. Sempre com contenção, escrupulosa e metodicamente. Friamente. Cumprindo O DEVER, sem emoção.

Penso que a beleza deste filme reside no facto de nos presentear com quatro perfis humanos completamente distintos. E, o espectador faz a sua escolha....

Leitora assídua

Dse7e disse...

Foi preciso esperar um ano, mas sempre chegou um comentário no meu humilde espaço! Agora que já fiquei a conhecer o espaço da Professora (entre outros), prometo voltar para o explorar melhor. Ultimamente as minhas passagens pela Internet têm sido curtas (encontro-me a estudar para a primeira fornada de exames na Ordem. Mas será que alguma vez vamos parar de estudar? :) )
De todo modo, assim que tiver um pouco mais de tempo, vou passear por estas paragens!
Cumprimentos.

P.S.: foi bom matar saudades! :)

rtp disse...

Cara Thumbelina, como Presidente do Conselho de Administração (ehehehe), fico à espera de ouvir as suas propostas. Estou certa de que serão de elevado interesse. Mas, desde já, a aviso que o Tretas só subsidia os cigarros. :-))
Obrigada, Rocky!
Cara verde, não perderei.
Quanto à leitora anónima, em primeiro lugar um muito obrigada! Gostei, também eu, muito das suas palavras. Sim, julgo que Wiesler não estava vazio. A sua vida estava cheia, mas cheia de banalidade, de automatismos, de cegueira, de artificialismo, enfim, cheia de um grande vazio. Wiesler maravilhou-se, depois, com a verdade da vida do dramaturgo. Quanto aos perfis, concordo que se esboçam vários, a juntar ao de Wiesler (o único desenhado).
And last but not the least, caro J###, ups, caro dse7e, Professora? Eu? Eu sou a rtp! :-) Visito o seu blog com alguma regularidade. A banda sonora é quase sempre surpreendente - exceptuando talvez quando colocou lá o "Rock Halleluya" dos finlandeses que ganharam a Eurovisão. Os textos são muito interessantes! A verdade é que o tempo é escasso e só recentemente me rendi aos encantos da blogosfera. Daí que só agora tenha comentado. Lamento desiludi-lo, mas é verdade: o estudo não tem fim! Mas ... não desanime! Bom trabalho e boa sorte!
É verdade, é bom matar saudades!
Bj
rtp :-)

spring disse...

olá

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paula e rui lima