Madalena ofereceu-lhes um dos seus melhores sorrisos, ciente de que o tempo de reacção impedira uma foto em flagrante.
À falta de desenvolvimento, os convidados pegam, distraídos, nos fios das conversas deixadas em suspenso. A pouco e pouco, os círculos de convívio retomam a forma interrompida. O rumorejar sobe de volume.
Percebendo que evitara os estragos que o seu acto irreflectido poderia ter causado, Madalena volta-se para Mário, disparando-lhe com um ar glacial:
- Já fizeste o teu número. Vai-te embora. Não me estragues a festa. Esta fica por conta da …
Os acordes iniciais de um excerto de Scheherazade abafam o resto da frase.
Madalena afasta-se com uma andar meneado procurando esconder o sobressalto que a domina.
Mário, um tumulto por dentro, mas seráfico por fora, com a flute de champagne que um empregado nervoso, entretanto, lhe colocara nas mãos, cumpre competentemente a sessão de cumprimentos que aquele infeliz acontecimento quase perturbara. Quando dá por si, está no patamar exterior. De cada um dos lados, os últimos convidados esforçam-se por galgar apressadamente os lanços de escada, iluminados por pequenas velas azuis.
A noite já aterrara na cidade. Mas a lua cheia derrama um brilho prateado sobre a praça, quase deserta. Um grupo de jovens ruma alegremente à beira-rio. Do outro lado da rua, como que num outro mundo, o mundo sem fardas e smokings, um arrumador andrajoso descansa na soleira de uma porta. Um pouco acima, à boca de uma ladeira iluminada pelo reclame de um pitoresco restaurante, uma silhueta azul ciranda sem sentido. Mário sorri. Reconhece, na distância, a rapariga empertigada que numa tangente ao seu carro, estacionara a sua pequena vespa numa nesga entre dois carros.
- Cuidado! Olhe por onde anda! Não estamos em Itália! – ainda lhe gritara, depois de travar a fundo.
Como resposta recebera um grande sorriso da inesperada cinderela que, de um salto, já estava no passeio sem capacete e num vestido azul de alças que lhe denunciava as formas elegantes. Ficara desarmado quando ela rematara, com um piscar de olhos: “É vero! Desculpe”.
Distintamente aquele ponto azul era ela. Ainda pensara que fosse uma convidada da festa a que ia assistir. Assim o esperou. Via agora que em vão.
Margarida permanecia perto do local onde estacionara. Fora pontual, para variar. Esforçara-se, numa quase sonâmbula sucessão de acções, por vencer os ponteiros do relógio. Conseguira. E para quê? Ali estava aprumada, à espera dos outros membros da redacção. De qualquer modo, tinha de dar o exemplo, era a sua directora. Cantarolava o “Bang, Bang” de Nancy Sinatra, com que acordara e que não mais lhe saíra da cabeça – “Seasons came and change the time…”.
Felizmente, o cenário que tinha defronte dava-lhe distracção suficiente para ocupar o tempo. Era um rodopio a festa da revista “Tempo”. Uma revista de antiguidades com um orçamento milionário festejava o primeiro ano de vida com pompa e brilhantismo. A sua, com quase a mesma idade, sobrevivia a custo, contando os tostões para permanecer nas bancas. Podia estar do outro lado, na festa. Teria feito bem, quando recusara um lugar na redacção da "Tempo"? Preferira a liberdade de dirigir uma revista descomprometida. Confirmou o acerto da sua decisão à medida que iam chegando os 18 colaboradores que a acompanhavam, desde o início, naquele projecto e que, agora, sentia como seus amigos.
Enchiam o pequeno restaurante onde se encontravam depois do fecho de cada uma das 11 edições da revista. Não lhe agradava a perspectiva do karaoke prometido para o fim da noite. Fora ideia da Xana, seu braço direito. As garantias de que era muito divertido e que fomentava a confraternização não a haviam convencido. Mas como podia discordar de quem frequentava festas como hobby?
Meio-adormecida e deliciada com a amena cavaqueira familiar que a rodeava, lembrou-se do incidente do início da noite com o bólide metalizado. Recordou o atractivo yuppie que o conduzia e a surpresa que lhe ficara estampada no rosto. Sorriu por dentro. Tinha de ter mais cuidado. Já não estava em Roma.
Bang, Bang. Acordou pela segunda vez nesse dia, agora com um leve toque no braço e:
- Para ti. Uma rosa para ti, Margarida.