quinta-feira, agosto 31, 2006

segunda-feira, agosto 28, 2006

Curtas sobre Metragens



United 93, Vôo 93
Duração: 90 min.
Origem: EUA, 2006.
Realização: Paul Greengrass.
Argumento: Paul Greengrass.
Produção: Zakaria Alaoui, Tim Bevan, Eric Fellner, Lloyd Levin, Mairi Bett.

Acabo de ver o United 93 (Vôo 93). Quase cinco anos volvidos sobre aquela manhã de 11 de Setembro de 2001, o mundo não é já o mesmo, descontada a normal evolução (ou involução) que Cronos a todos nos traz.
Dedicado à memória daqueles que sofreram na pele os horrores do fanatismo religioso, o filme impressiona pela objectividade com que a História é contada. Não se detectam moralismos, sentimentalismos patrióticos bacocos ou um excessivo aproveitamento da desgraça. Tudo, enfim, ao invés do que de mau uma certa corrente de Hollywood representa. Mesmo as notórias falhas de coordenação entre os serviços estatais é assumida de forma não titubeante.
O argumento e a realização andam de mãos dadas numa sinfonia bem orientada. A escolha do ângulo do único vôo que, graças à intervenção de cidadãos anónimos, falhou o seu alvo, é uma homenagem pela positiva ao abominável desespero que enlutou os EUA e o mundo. Ver na desgraça uma luz de esperança, representada pelos passageiros que, seguros da morte, conseguiram evitar um mal maior, é um hino sério à resistência dos espíritos livres que, contra o terrorismo, decidem não abdicar dos valores que as sociedades democráticas defendem. George W. Bush devia ver este filme e reflectir na sua mensagem à medida que vai aniquilando as liberdades civis no País mais esquizofrénico e complexado do planeta. Sob pena de passarmos a ter uma espécie de «sociedade de inimigos», sendo indiscutível que os Estados devem dotar-se de instrumentos jurídicos aptos a permitir uma eficaz resposta à «peste do séc. XXI», nada justifica medidas como o «Patriot Act».
Destaco ainda a inexistência de protagonistas dado que, na realidade, personagens foram todos os que, naquele dia, acordaram para um choque civilizacional que se adivinhava e com o qual teremos de continuar a lidar.
Termino com uma tocante cena do filme: poucos segundos antes de o avião se despenhar, as orações sentidas de muçulmanos e cristãos a Deus e a Alá fazem-nos acreditar que, não sendo o «ópio do povo», as religiões são antes, no fenómeno terrorista, uma justificação metafísica para algo bem mais terreno – o poder.

Post scriptum


Miguel de Unamuno, Um Homem, Europa-América, Mem Martins: 2003.

Miguel de Unamuno é, indiscutivelmente, um escritor de craveira no panorama literário espanhol do virar do séc. XIX e das primeiras décadas do século transacto. Reitor da Universidade de Salamanca, a sua obra mais aclamada – Vida de D. Quixote e Sancho (1905) – é um ensaio profundo sobre a obra-prima de Cervantes.
Em férias, tive a ocasião de ler um título, na verdade um conto, menos conhecido mas que, nem por isso, desmerece o autor. Um Homem (Un Hombre, no original), 1916, centra-se no paradoxo da beleza física e das venturas e desventuras a ela associadas. Filha de um homem praticamente arruinado, com negócios menos claros, a inigualável beleza da filha é o tesouro mais precioso que possui e, segundo crê, o salvo-conduto perfeito para a salvação financeira e social.
Contudo, Júlia Yañez sente-se uma mercadoria posta à venda e, quase desdenhando a beleza, tenta fugir de casa com rapazes que nela vêem um troféu e motivo de ufano. Surge, porém, um homem muito rico, desconhecido daquelas paragens, sem berço ou família conhecida, mas com uma força que se diria de um outro mundo, pronto a fazer seu tudo aquilo que deseja – Alexandre Gómez. Júlia não escapa a esta lógica e o fado da mulher-objecto concretiza-se.
Em vão procura ela perscrutar da existência de um verdadeiro amor por parte de Alexandre, para o que enceta um triângulo amoroso com o conde de Bordaviella, nobre tosco, moralmente asqueroso e que também nela vê a tábua de salvação de uma casta arruinada. Contudo, os ciúmes não chegam. Gómez diz ser «um grande homem», insensível a essas coisas e trata o conde com um paternalismo atroz, como um animal de companhia insignificante. Depois de a internar, Alexandre revela, em momento de doença grave de Júlia todo o seu amor. O relato é pungente, num homem de feições rudes e de coração duro que, após a morte da amada, segue-a para a eternidade.
Narrativa realista quanto à equivocidade da beleza, Um Homem formula o convite para que vejamos para além das aparências, num jogo interessante de sentimentos e sua demonstração. Impressiona a necessidade de Júlia, reflexo de todos nós, se sentir amada e que esse amor seja verbalizado.
Escrita simples, quase um espelho límpido em que contemplamos topoi caros à sociedade moderna: o físico, o ciúme, o amor, a loucura, as tramas complexas em que amiúde nos perdemos para captar a atenção e, como é óbvio, a inquietação do que significa ser «um grande homem».
Apetece rematar com um trecho da lírica de Unamuno (El cuerpo canta): El cuerpo canta;/la sangre aúlla; /la tierra charla;/la mar murmura; /el cielo calla y el hombre escucha.

domingo, agosto 27, 2006

Post scriptum


Alves & Ca., Eça de Queirós, Lello & Irmãos Editores, Porto, s/d.

Ainda Eça. Alves & Ca., apresentado em nota prévia pelo filho do escritor (José Maria d’Eça de Queiroz, 1925), responsável pela sua publicação póstuma como um pequeno livro, escrito de um jacto e sem correcções, como era apanágio de Eça apresenta-se, na verdade, como uma obra menor na bibliografia queirosiana.
Não pelo tamanho, mas sim pelo carácter despretensioso que o autor lhe desejou imprimir. Retrato da sociedade burguesa lisboeta do séc. XIX, a trama centra-se na traição de Godofredo Alves, rico comerciante, pela sua mulher Lulu, apanhada em dia de aniversário de casamento a ser cingida pela cintura por Machado, sócio e protegé do marido ferido, que andara com este ao colo e o recebera de braços abertos – também devido à invulgar argúcia para o negócio que Machado demonstrava – na sociedade comercial e na vida privada.
A partir daqui, o mundo de pequenos prazeres – leitura ao final do dia com Lulu a costurar a seu lado, casa bem arrumada, uns leves arrebates carnais – da personagem principal desmorona-se e nasce o férreo desejo de vingança. Depois de algumas peripécias em que Eça descreve com nitidez o conceito de honra da época, um duelo de morte é posto de lado, Lulu vai com os pais para a Ericeira, a fim de «calar a maledicência». Godofredo tem de continuar, por imperativos de cavalheirismo que desconhece (guiado pelos amigos Carvalho e Medeiros), a ver Machado diariamente e a sua existência, como descreve o autor, torna-se «abominável».
Não mais aguentando tal padecimento, o marido traído aproveita um pequeno episódio para reconquistar Lulu. Godofredo volta a ser feliz e, depois de uma série de desgraças na vida de Machado, a amizade reata-se mais forte que nunca. A partir daí, a traição e o desejo de vingança que se lhe seguiu é caracterizado como uma «grande tolice», rematando o personagem central com um seco «que coisa prudente é a prudência».
Retrato de conceitos como a honra, as regras sociais, o choque entre uma nobreza arruinada mas ciosa de pergaminhos de conduta cavalheiresca são o húmus de que se nutre este romance. Tudo de forma muito leve, lida de um trago, a saber a pouco.
De facto, como em tudo, o bom só o é por comparação ao menos bom. Na literatura esta afirmação é a mais crua realidade: por mais genial que o escritor seja – e Eça é-o –, a centelha luminosa não resplandece a cada namoro que a pena tem com o papel.

Regressar



Regresso a casa, à minha cidade do Porto,
Cativo de diferentes paisagens que contemplei,
De cheiros e gentes diversas das que conheço,
De uma luz e de um Sol que, sendo universal,
Brilha e ilumina as latitudes de forma desigual.

Contemplo o Douro reflectindo o céu em finais de Agosto,
A preguiça do casario ribeirinho,
A altivez das pontes que unem as margens,
Os sons e o ar que inspiro
E que acordam células que levava adormecidas.

Regressar é também voltar ao ponto de partida,
Agora mais rico e, por isso,
Voltar a uma nova partida,
Com os mesmos desafios, alegrias e inquietações,
Mas todas elas sob o granito do Porto,
Não já frio e cortante, mas aconchegante e amigo.

Não sou filho pródigo.
Desejo ser tão-só digno da cidade em que, mal abri os olhos,
Encarei o Infante apontando a rota das Descobertas.

Sei para onde vou; este é o Caminho!

F.L.

quinta-feira, agosto 17, 2006

A rádio no ar

Pessoal... e Transmissível e João Lobo Antunes

No panorama radiofónico português, o programa «Pessoal... e Transmissível», de Carlos Vaz Marques, na TSF, é uma canção que nos embala ao fim do dia, de regresso a casa e antes do costumado noticiário televisivo das 20 h. Sempre com uma excelente qualidade ao nível da locução, dos textos e da investigação que o jornalista coloca em cada entrevista, é, sem dúvida, de escuta obrigatória e a lembrar os tempos em que as ondas da rádio não tinham rival.
Hoje tive a felicidade de ouvir, nesse espaço, a entrevista ao Prof. João Lobo Antunes. O neurocirurgião, reputado dentro e fora de portas, mandatário nacional na campanha para as presidenciais do actual Chefe de Estado, é ainda um escritor. «Sobre a mão e outros ensaios», editado pela Gradiva, foi o pontapé de saída para uma conversa de inteligência acima da média.
Lobo Antunes começa por comparar, numa imagem de rara beleza, a intervenção médico-cirúrgica a um ritual sagrado: há paramentação, purificação dos intervenientes e, acima de tudo, a entrega da vida do paciente nas mãos de um punhado de homens e mulheres num momento em que o doente está com a sua «humanidade ferida», como gosta de referir o médico. Contudo, o professor adverte para o perigo de deificação daqueles que julgam que ser clínico é desafiar permanentemente a lei natural da vida. E eis que surge a morte, tema recorrente nas conversas com João Lobo Antunes. O próprio confessa-se surpreso com a insistência com que lhe pedem que aborde a questão e, numa frase lapidar, resume: «a morte serena e em paz é cada vez mais rara, a morte de ter vivido», lembrando que a boa prática e ética clínicas implicam aceitar o limite da inconveniência da intervenção médica quando nada mais de humano se pode esperar. Cita um escritor inglês para ameaçar a morte – «não sejas vaidosa!» –, nega o estrelato a que simpaticamente o jornalista o quer votar e, de forma emotiva, lembra uma frase de um livro que está a ler e em que o epitáfio que a mulher do defunto escolheu seria também aquele que o neurocirurgião quereria para si mesmo: «Aqui jaz um homem que fez algumas coisas que era preciso fazer e disse algumas coisas que era preciso dizer». Uma espécie de «my way» de Sinatra.
Não esconde as suas convicções. Tem por divisas duas parábolas: a do bom pastor e a dos talentos, reconhecendo nesta última aquela que mais o identifica, porquanto traduz em toda a plenitude a vontade do serviço. Assume a sua «intervenção cívica» ao lado de Cavaco Silva sem peias e com uma elegância e um desprendimento de quem, como ele, não precisa da «politiquice» (que não a verdadeira ars de governo da polis).
E remata com duas ideias que me deixaram meditativo. A primeira: o pessimismo, até do exclusivo prisma clínico, é um mal que se concretiza no momento em que se acredite nele. A segunda: temos de aprender a «vendermo-nos caro» (tradução de uma expressão norte-americana que marcou o Prémio Pessoa nos mais de dez anos que exerceu em Nova Iorque), i. é, devemos saber bem o que valemos e apreciarmo-nos por isso. Num País onde tanto se fala de crisis – e ela está aí, em cada casa e em cada rua –, ondas radiofónicas com sabor a «oásis» (piadinha cavaquista…) vêm mesmo a calhar!
E assim se chega a casa de alma cheia!

quarta-feira, agosto 16, 2006

A sociedade de Eça


O aniversário da estrela queirosiana que se apagou há 106 anos é um feliz pretexto para partilhar a clarividência e inteligência com que o Eça fez a crítica dos costumes da época, qual Gil Vicente (ridendo castigat mores), e para verificar que um século é, na verdade, quase nada na evolução ou involução da mentalidade comunitária.
Tal como na sociedade coetânea, encontramos a cada passo o «Chico-esperto», o «fura-vidas», tantas vezes erigido em exemplo e desculpado pela própria sociedade que nele se revê e aí considera residir o absoluto de uma certa manha. Estas personagens povoam o imaginário colectivo e, tal como os burlões, constituem uma espécie de reduto em que as leis humanas não almejam, muitas vezes, o papel de controlo social que se lhes adscreve.
Há ainda, na imensa galeria queirosiana, uma tipologia humana quase em extinção: o sonhador depressivo, desalentado com o mundo em seu redor e que aspira às coisas simples e verdadeiras do existir. Assim leio Carlos e, nos seus traços gerais, revejo um certo optimismo antropológico que, com a idade, acredito que vamos perdendo. Quantas vezes nos defrontamos com a afirmação «isto já não me surpreende»? Neste linguajar vai encerrado quer um desalento a combater, quer uma fria, racional e sempre protectora adaptação à realidade. O difícil, como se sabe, é encontrar o ponto óptimo entre ambas as concepções do mundo, na certeza de que rodearmo-nos de muralhas elevadas é sempre cortar o istmo que liga a península ao continente ou, dito de outro modo, cortar o cordão umbilical do sonho e da beleza existente no simples contemplar do ser Pessoa.
Para quem vai sendo um pessimista antropológico, a obra de Eça, retrato impressionista do que nos cerca, é também um convite à aceitação do diferente e dos pontos de luz titulados por cada ser. Quando leio A Cidade e as Serras, sinto este convite ao aproveitamento daquilo que de positivo há em cada um de nós e à verificação, ao mesmo tempo de singela simplicidade e urdida complexidade, de que a crítica ao Outro é, de forma sub-reptícia, a exaltação do egoísmo e a pretensão de sermos mais do que os nossos semelhantes, como se, por magia, tivéssemos sido bafejados por um endeusamento desmedido.
Ao lembrar Eça percorre-nos a certeza de que o mundo é cada vez mais cinzento e a precisar de muitas pinceladas de cores vivas. Primárias. Num dia escuro e chuvoso a meio de um Agosto sem nada de muito relevante a registar.

segunda-feira, agosto 14, 2006

Condição humana


René Magritte, La Condition humaine, 1934, colecção privada.


Nos vales escarpados do teu corpo

De água desesperada pelo mar,

Depositou ele todas as munições do verbo “amar”,

Levantando sobre leiras e em vãs estacas

O silêncio comprometido de outrora,

E num abraço eterno venceu a aurora.

-Astro fosforescente,

Em dias de sol ardente,

Transformaste o homem retraído

Em glória do momento protraído!

E esse que ora em teu ombro repousa,

É sombra de dia nunca nascido

Ou realidade escrita em lousa

Da escola do afago prometido?

-Moldei-te ao meu feitio!

-Erro humano do mais ímpio gentio…

-Deixa, é bálsamo de ilusão!

-Que sejas sempre amputada de razão…

quarta-feira, agosto 09, 2006

Post scriptum


José Saramago, Don Giovanni ou O dissoluto absolvido, Lisboa: Caminho, 2005.
Preço: €6,30.
Ao longo de seis cenas, Saramago aceita o enorme desafio de revisitar uma das personagens mais glosadas da literatura universal, mote para a famosa ópera de Mozart, de 1787. Depois de monstros como Molière, Byron ou Dumas, para só citar alguns, o original de Tirso de Molina (El burlador de Sevilla), depois de retratado por Almeida Faria em O Conquistador, é visto através do olhar do Prémio Nobel, em edição enriquecida pela descrição inteligente da génese do libreto de Azio Corghi, da autoria de Graziella Seminara.
Como seria de esperar, esta incursão de Saramago pelo teatro passa pela alteração de perspectiva da personalidade de Don Giovanni. De condenado empedernido, o arrebatador de corações femininos passa a «dissoluto absolvido», ou seja, um pobre diabo que, ao fim de contas, não havia estado com as 2065 mulheres constantes do seu livro de registo que, uma vez trocado por um livro em branco, faz cair a máscara do aventureiro amoroso e revela um simples homem, perdido, porventura mesmo sexualmente impotente, trémulo e ao qual Zerlina dá a mão, quase ao cair do pano. O sedutor é seduzido pela verdade e revela toda a sua humanidade: «Zerlina: Não amo Masetto, amo-te a ti. / Don Giovanni: Tremem-me as mãos. Este não é Don Giovanni. / Zerlina: Este é Giovanni, simplesmente. Vem.»
Esta humanização da personagem é porventura, a par da relação maniqueísmo/determinismo, o que mais ressalta da adaptação de Saramago. Em toda a peça somos interrogados sobre a nossa visão a preto e branco do mundo: bem vs. mal, puro vs. impuro, e convidados a observar a realidade também com tons de cinzento («Don Giovanni: Andais pela vida a distribuir palavras que parecem jóias e afinal são enganos, colocais com fingido amor a mão sobre a cabeça das criancinhas. (…) A gente como vós cospe-a Deus da sua boca.» e, mais, à frente: «Como agora se costuma dizer, é uma questão de ponto de vista.»). Contudo, o autor cai num excessivo relativismo, propendendo para que nada é adquirido, assim abrindo caminho a que tudo seja admitido. Sem farisaísmos, não é esta uma perspectiva aceitável. Se mais não fora, temos aí a História a ensinar-nos que é o relativismo levado ao extremo o responsável pelos mais abomináveis actos e omissões do Homem. Terá de existir sempre, em cada sociedade, um núcleo mínimo de referências, sob pena de a desagregação se erigir em princípio absoluto.
O enredo é perpassado por momentos de humor (v. g., «Don Giovanni: Falhaste, comendador, pelos vistos não tens nenhuma influência no governo do inferno. Talvez por estares no paraíso, talvez não haja linhas de comunicação.») e a mulher é, no final, de certo modo diabolizada («Leporello: (…) Deus e Diabo estão de acordo em querer o que a mulher quer.»), atendendo à época histórica que Saramago retrata ou, quiçá, a uma fina critica da concepção cristã do mundo, tão ao gosto das alfinetadas do escritor.
É também esta uma peça de estereótipos: o criado Leporello – «Aos criados mandam-nos que sejamos descarados, medrosos e cobardes. Não podemos ser outra coisa.»; a condição humana: «É um homem [Don Giovanni], nasceu com defeitos de homem e gostou deles.»; o pai de D. Ana, o Comendador estátua que não pode mentir, em busca da honra perdida da filha enganada (ou enganadora?). Reflectindo sobre a (in)justiça dos homens, Saramago utiliza ditados populares e mesmo uma espécie de «sabedoria de igreja» que, aliás, percorre a peça num tom de ironia, atendendo às próprias convicções do autor.
Para quem deseja ser um verdadeiro Don Giovanni, o conselho fica pela boca do próprio, terminando com a secular impossibilidade lógica de compreender a psicologia feminina: «Uma mulher que se negou uma vez poderá não negar-se segunda, mas nunca o faria por iniciativa própria, esperaria até que a rodeassem de novas súplicas, de novas implorações, em suma, de novas manobras de sedução. Então, sim, içaria a bandeira branca que já tinha preparada.»

terça-feira, agosto 08, 2006

Curtas sobre Metragens


Le Goût des Autres, O Gosto dos Outros, 2000.
Realização: Agnès Jaoui.
Argumento: Agnès Jaoui e Jean-Pierre Bacri.
Elenco: Agnès Jaoui, Jean-Pierre Bacri, Anne Alvaro, Alain Chabat, Gérard Lanvin, Christiane Millet.
Duração: 110 minutos.
*****
Tributário do chamado «cinema de autor» ainda tão em voga em França, Le Goût des Autres (O Gosto dos Outros), realizado, escrito e também interpretado por Agnès Jaoui, parece, às primeiras cenas, uma comédia romântica sem conteúdo. No entanto, basta ultrapassar esse pré-conceito inicial e rapidamente se verifica estarmos perante um excelente filme, premiado com três Césars em 2001, melhor argumento nos Prémios Europeus do Cinema de 2000, Grande Prémio das Américas no Festival de Montreal em 2000 e nomeação para os Óscares, na categoria de melhor filme estrangeiro (2001).
O argumento reflecte o contraste e o sectarismo entre os mundos das personagens, verdadeiros porta-estandartes de cada um de nós. Jean-Jacques Castella (Jean-Pierre Bacri, marido de Agnès), um rico industrial, self made man, casado com Angélique (Christiane Millet), decoradora frustrada, de gosto muito duvidoso (casa florida, cheia de cores que ferem a vista), frívola, mais interessada em salvar um passarinho ferido do que o seu próprio casamento, vive no seu mundo de gostos simples, quase simplórios, com parcos conhecimentos de música, cinema, teatro ou pintura. A peça Bérénice, na qual se apaixona à primeira vista por Clara (Anne Alvaro), actriz de 40 anos («faltam-me dois minutos para conceber», observa ela), semi-amadora, desiludida com os homens e com o mundo, é o ponto de viragem no mundo do industrial, principalmente quando descobre que Clara é a sua professora de Inglês, língua da qual necessita para concluir um importante negócios. Aulas responsáveis por momentos de fino humor, como aquele em que Castella aprende a pronunciar the ou nothing. De gostos requintados, conhecedora das belas-artes, com um círculo de amigos pseudo-intelectuais e em que alguns deles fazem gala da sua diferença (bem explorada a questão da homossexualidade vista pelo homem do povo que é Castella, ao mesmo tempo buçal e de uma ternura desarmante), a actriz aceita, de modo relutante, a entrada do seu aluno no seu grupo de amigos, onde começa por ser tratado como um ignorante (sem que este se aperceba), até ganhar um certo ascendente (muito por via de uma boa conta bancária à qual nem os mais intelectualóides permanecem imunes).
A história de amor desenvolve-se: Castella declara-se a Clara através de um poema que escrevinha em Inglês, mal recebido pela professora, demasiado amedrontada para embarcar num amor verdadeiro aos 40 anos. Mais um preconceito – a idade –, que faz com que o espectador, aqui como em outras cenas, adivinhe o enredo que se seguirá – aspecto menos positivo do filme este da previsibilidade.
Choque ainda entre dois homens: o motorista (Bruno Deschamps, o actor Alain Chabat) e o guarda-costas de Castella (Franck Moreno, o actor Gérard Lanvin). O primeiro, algo ingénuo, à procura de manter uma relação à distância com a namorada que se encontra nos EUA a fazer um estágio, embora durma com Manie (Agnès Jaoui), empregada de um bar, com quem «já o fizera uma vez»; o guarda-costas, ex-polícia desiludido com a corrupção que grassa no país, supostamente pragmático e realista, até que disputa Manie, com quem vive um romance que, se houvesse coragem de ambos, acabaria em algo duradoiro. No meio, o mundo de Castella e o de Weber (Xavier De Guillebon), licenciado em Universidade parisiense de referência, bem-falante e com bons fatos, de tom paternalista e quase desprezando a (ausência de) cultura de Castella.
O filme termina com a resposta à interrogação do porquê de Bruno aparecer a ensaiar flauta transversal vezes sem conta. Afinal, ele faz parte de uma banda, local onde se sente verdadeiramente integrado. Aliás, Agnès Jaoui resume aqui de modo soberbo a mensagem do filme: por mais diversos que sejam os nossos gostos, todos procuramos um lugar onde nos sintamos parte de um todo, de preferência sem que tal obnubile a nossa originalidade.
Banda sonora interessante, com alguns clássicos de Verdi, Mozart ou Schubert, fotografia a deixar um sabor a pouco, para representações de bom nível. A iluminação desmerece as restantes componentes fílmicas.
No ouvido, uma das frases iniciais, na boca de Bruno: «só por encontrares uma ostra estragada, não vais deitar fora as outras» e uma das deixas da segunda peça interpretada por Clara: «o mais difícil é depender dos outros». Ostras e pessoas, neste particular, a diferença não é grande.

segunda-feira, agosto 07, 2006

A vista da bruma


Jean-Désiré-Gustave Courbet, La Mer orageuse, 1870, Musée d'Orsay.

Murmúrio de branca espuma,
Rochedo isolado no mar,
Espelho de sol pela brisa batido.
Tudo observo em manhã de bruma
Enquanto prolongo as asas no ar
E ofegante saúdo o dia despido.

Livre, em silêncio acompanho a maré
De peixes que falam em água sem pé:
-Sereia endeusada, é hoje, não é?

Dia enorme junto ao pescador,
Rede lançada enlaçada de dor
Que apaga lembrança do dia d'ardor!

F.L.

domingo, agosto 06, 2006

Early Night Posts (7)


Rembrandt van Rijn, O Regresso do Filho Pródigo, c. 1662, Hermitage, S. Petesburgo.
Rembrandt é o filho mais velho como é o mais novo. Quando, nos últimos anos da sua vida, pintou os dois rmãos em O Regresso do Filho Pródigo, tinha atrás de si uma vida à qual não era estranho nem o extravio do filho mais novo nem o do mais velho. (...) Ambos necessitavam de voltar para casa.
Henri J. M. Nouwen, O Regresso do Filho Pródigo, 4.ª ed., Braga: Editorial A.O., 1995, p. 75.

Curtas sobre Metragens


The Wind That Shakes the Barley, Brisa de Mudança, 2005.
Realização: Ken Loach
Elenco: Cillian Murphy; Padraic Delaney; Liam Cunningham; Gerard Kearney; William Ruane
Argumento: Paul Laverty
Género:Drama
Duração:127 min.

Vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes de 2006, o filme interroga-nos de modo pungente sobre os valores em que acreditamos e sobre os limites até aos quais estamos dispostos a levá-los. No argumento (de Paul Laverty), em geral de muito boa qualidade, dois irmãos ligados pela mesma vontade de uma Irlanda livre do jugo britânico, caminham lado a lado até ao ponto em que a real politik entra em cena e, como tantas vezes, um deles opta pelo possível e realista, enquanto outro, um sonhador e porventura utópico médico, não capitula perante um tratado de paz com o poderoso Reino Unido e, fiel à morte de um companheiro de brincadeira que se viu forçado a infligir em nome dos seus princípios, junta-se a outros camaradas para passar a lutar, agora contra outros irlandeses. A luta fratricida acaba em desgraça, com uma intensidade dramática adequada, sem cair em dramalhões soturnos e sem apego à realidade.
Esta é, também – ou sobretudo – uma reflexão sobre a inflexibilidade e a teimosa extrema que, em nome de princípios democráticos, nada mais é que uma dura tirania. Através de alguns planos de paisagens deslumbrantes da orografia da República da Irlanda, somos conduzidos à certeza de que a vida faz-se com soluções de compromisso. Ao invés, a luta intransigente e cega por propalados valores é apresentada como egoísmo egocêntrico (a redundância é propositada) e posta com toda a sua crueza: a morte física de Damien (Cillian Murphy) e a morte interior de Teddy O´Donovan (Padraic Delaney).
«Daqui a algum tempo, ajuda o Teddy. Ele vai precisar. Acredito que uma parte dele já estará morta nesta altura», escreve Damien à sua amada Seamus, em carta que o próprio mandante Teddy se encarrega de levar à mulher destroçada. Frase poderosa não apenas pela grandeza do gesto do perdão de quem percebe que os ideais extremados são contra natura, mas também pela lição histórica: os extremismos vividos na Irlanda de 1920 são, no essencial, os mesmos que hoje pululam, entre outros, na guerra entre Israel e o Hezbollah (ou o Líbano, consoante a leitura política que se prefira).
Representações acima da média de Cillian Murphy e de Padraic Delaney, em especial do primeiro, para um guarda-roupa que, sem ser excelente, faz jus ao filme. Contudo, algumas cenas do filme poderiam, sem prejuízo do argumento, ser retiradas, de tal modo que a película ganhasse ainda mais acutilância.
Em época de silly season, eis um bom motivo para manter alguma ginástica mental. Ken Loach continua em bom nível depois de Land and Freedom (1995), não se aproximando em demasia de Michael Collins, o que é sempre tentador nesta temática.

sábado, agosto 05, 2006

Pingos de sol


Danièle Jaquillard, La force et le souffle, 2004.
Somos sempre mais fortes do que julgamos,
Mesmo quando caídos antecipamos o fim.
Forças ocultas que buscamos
Da mão estendida à espera do sim.

Pingos de sol hasteados no céu
Cobrem as feridas de um diáfano véu.

A tona da água é um risco de vida
À qual permaneces quase ofendida.
O fundo do mar traz sopro de gente
Ao luar que embrulha esta noite quente.

Pingos de sol hasteados no céu
Cobrem as feridas de um diáfano véu.

Esperançosa estás deitada no leito,
Alegria em surdina abraçada no peito.
-A esperança é caminho em movimento
E não paragem em tom de tormento!

Pingos de sol hasteados no céu
Cobrem as feridas de um diáfano véu.

F.L.

quinta-feira, agosto 03, 2006

Revolução de cetim

Henri-Julien-Félix Rousseau, La Guerre, 1893-4, Musée d’Orsay.

Tranquilidade ao olhar
A prata do rio que serpenteia
O sereno encaixar
No mar perdido de Pompeia.
Paz na espera
Por ti com quem sonho
Mais que uma quimera
Do coração que transponho.

Certeza na recta
Que para mim tracei,
Longe da meta
Que em ti eu sei.
Recta irregular,
Geometria da emoção,
Sempre a rabiscar
O pulsar da paixão.

-Comandante, a batalha está perdida!
-É o mais certo, valente companheiro…
-Vamos então salvar a vida!
-Como, se a vida morreu primeiro?

F. L.

terça-feira, agosto 01, 2006

Zoomático

Tranquilidade emaranhada - rtp