O aniversário da estrela queirosiana que se apagou há 106 anos é um feliz pretexto para partilhar a clarividência e inteligência com que o Eça fez a crítica dos costumes da época, qual Gil Vicente (ridendo castigat mores), e para verificar que um século é, na verdade, quase nada na evolução ou involução da mentalidade comunitária.
Tal como na sociedade coetânea, encontramos a cada passo o «Chico-esperto», o «fura-vidas», tantas vezes erigido em exemplo e desculpado pela própria sociedade que nele se revê e aí considera residir o absoluto de uma certa manha. Estas personagens povoam o imaginário colectivo e, tal como os burlões, constituem uma espécie de reduto em que as leis humanas não almejam, muitas vezes, o papel de controlo social que se lhes adscreve.
Há ainda, na imensa galeria queirosiana, uma tipologia humana quase em extinção: o sonhador depressivo, desalentado com o mundo em seu redor e que aspira às coisas simples e verdadeiras do existir. Assim leio Carlos e, nos seus traços gerais, revejo um certo optimismo antropológico que, com a idade, acredito que vamos perdendo. Quantas vezes nos defrontamos com a afirmação «isto já não me surpreende»? Neste linguajar vai encerrado quer um desalento a combater, quer uma fria, racional e sempre protectora adaptação à realidade. O difícil, como se sabe, é encontrar o ponto óptimo entre ambas as concepções do mundo, na certeza de que rodearmo-nos de muralhas elevadas é sempre cortar o istmo que liga a península ao continente ou, dito de outro modo, cortar o cordão umbilical do sonho e da beleza existente no simples contemplar do ser Pessoa.
Para quem vai sendo um pessimista antropológico, a obra de Eça, retrato impressionista do que nos cerca, é também um convite à aceitação do diferente e dos pontos de luz titulados por cada ser. Quando leio A Cidade e as Serras, sinto este convite ao aproveitamento daquilo que de positivo há em cada um de nós e à verificação, ao mesmo tempo de singela simplicidade e urdida complexidade, de que a crítica ao Outro é, de forma sub-reptícia, a exaltação do egoísmo e a pretensão de sermos mais do que os nossos semelhantes, como se, por magia, tivéssemos sido bafejados por um endeusamento desmedido.
Ao lembrar Eça percorre-nos a certeza de que o mundo é cada vez mais cinzento e a precisar de muitas pinceladas de cores vivas. Primárias. Num dia escuro e chuvoso a meio de um Agosto sem nada de muito relevante a registar.
quarta-feira, agosto 16, 2006
A sociedade de Eça
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3 comentários:
É bom chegar a casa e ter coisas destas.
Um livro de que gostei muito de ler e comentar!
é bom encontrar um leitura que vem acrescentar algo à nossa própria visão da obra por nós lida e analisada.
Beijinhos
CSD
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