José Saramago, Don Giovanni ou O dissoluto absolvido, Lisboa: Caminho, 2005.
Preço: €6,30.
Ao longo de seis cenas, Saramago aceita o enorme desafio de revisitar uma das personagens mais glosadas da literatura universal, mote para a famosa ópera de Mozart, de 1787. Depois de monstros como Molière, Byron ou Dumas, para só citar alguns, o original de Tirso de Molina (El burlador de Sevilla), depois de retratado por Almeida Faria em O Conquistador, é visto através do olhar do Prémio Nobel, em edição enriquecida pela descrição inteligente da génese do libreto de Azio Corghi, da autoria de Graziella Seminara.
Como seria de esperar, esta incursão de Saramago pelo teatro passa pela alteração de perspectiva da personalidade de Don Giovanni. De condenado empedernido, o arrebatador de corações femininos passa a «dissoluto absolvido», ou seja, um pobre diabo que, ao fim de contas, não havia estado com as 2065 mulheres constantes do seu livro de registo que, uma vez trocado por um livro em branco, faz cair a máscara do aventureiro amoroso e revela um simples homem, perdido, porventura mesmo sexualmente impotente, trémulo e ao qual Zerlina dá a mão, quase ao cair do pano. O sedutor é seduzido pela verdade e revela toda a sua humanidade: «Zerlina: Não amo Masetto, amo-te a ti. / Don Giovanni: Tremem-me as mãos. Este não é Don Giovanni. / Zerlina: Este é Giovanni, simplesmente. Vem.»
Esta humanização da personagem é porventura, a par da relação maniqueísmo/determinismo, o que mais ressalta da adaptação de Saramago. Em toda a peça somos interrogados sobre a nossa visão a preto e branco do mundo: bem vs. mal, puro vs. impuro, e convidados a observar a realidade também com tons de cinzento («Don Giovanni: Andais pela vida a distribuir palavras que parecem jóias e afinal são enganos, colocais com fingido amor a mão sobre a cabeça das criancinhas. (…) A gente como vós cospe-a Deus da sua boca.» e, mais, à frente: «Como agora se costuma dizer, é uma questão de ponto de vista.»). Contudo, o autor cai num excessivo relativismo, propendendo para que nada é adquirido, assim abrindo caminho a que tudo seja admitido. Sem farisaísmos, não é esta uma perspectiva aceitável. Se mais não fora, temos aí a História a ensinar-nos que é o relativismo levado ao extremo o responsável pelos mais abomináveis actos e omissões do Homem. Terá de existir sempre, em cada sociedade, um núcleo mínimo de referências, sob pena de a desagregação se erigir em princípio absoluto.
O enredo é perpassado por momentos de humor (v. g., «Don Giovanni: Falhaste, comendador, pelos vistos não tens nenhuma influência no governo do inferno. Talvez por estares no paraíso, talvez não haja linhas de comunicação.») e a mulher é, no final, de certo modo diabolizada («Leporello: (…) Deus e Diabo estão de acordo em querer o que a mulher quer.»), atendendo à época histórica que Saramago retrata ou, quiçá, a uma fina critica da concepção cristã do mundo, tão ao gosto das alfinetadas do escritor.
É também esta uma peça de estereótipos: o criado Leporello – «Aos criados mandam-nos que sejamos descarados, medrosos e cobardes. Não podemos ser outra coisa.»; a condição humana: «É um homem [Don Giovanni], nasceu com defeitos de homem e gostou deles.»; o pai de D. Ana, o Comendador estátua que não pode mentir, em busca da honra perdida da filha enganada (ou enganadora?). Reflectindo sobre a (in)justiça dos homens, Saramago utiliza ditados populares e mesmo uma espécie de «sabedoria de igreja» que, aliás, percorre a peça num tom de ironia, atendendo às próprias convicções do autor.
Para quem deseja ser um verdadeiro Don Giovanni, o conselho fica pela boca do próprio, terminando com a secular impossibilidade lógica de compreender a psicologia feminina: «Uma mulher que se negou uma vez poderá não negar-se segunda, mas nunca o faria por iniciativa própria, esperaria até que a rodeassem de novas súplicas, de novas implorações, em suma, de novas manobras de sedução. Então, sim, içaria a bandeira branca que já tinha preparada.»
Como seria de esperar, esta incursão de Saramago pelo teatro passa pela alteração de perspectiva da personalidade de Don Giovanni. De condenado empedernido, o arrebatador de corações femininos passa a «dissoluto absolvido», ou seja, um pobre diabo que, ao fim de contas, não havia estado com as 2065 mulheres constantes do seu livro de registo que, uma vez trocado por um livro em branco, faz cair a máscara do aventureiro amoroso e revela um simples homem, perdido, porventura mesmo sexualmente impotente, trémulo e ao qual Zerlina dá a mão, quase ao cair do pano. O sedutor é seduzido pela verdade e revela toda a sua humanidade: «Zerlina: Não amo Masetto, amo-te a ti. / Don Giovanni: Tremem-me as mãos. Este não é Don Giovanni. / Zerlina: Este é Giovanni, simplesmente. Vem.»
Esta humanização da personagem é porventura, a par da relação maniqueísmo/determinismo, o que mais ressalta da adaptação de Saramago. Em toda a peça somos interrogados sobre a nossa visão a preto e branco do mundo: bem vs. mal, puro vs. impuro, e convidados a observar a realidade também com tons de cinzento («Don Giovanni: Andais pela vida a distribuir palavras que parecem jóias e afinal são enganos, colocais com fingido amor a mão sobre a cabeça das criancinhas. (…) A gente como vós cospe-a Deus da sua boca.» e, mais, à frente: «Como agora se costuma dizer, é uma questão de ponto de vista.»). Contudo, o autor cai num excessivo relativismo, propendendo para que nada é adquirido, assim abrindo caminho a que tudo seja admitido. Sem farisaísmos, não é esta uma perspectiva aceitável. Se mais não fora, temos aí a História a ensinar-nos que é o relativismo levado ao extremo o responsável pelos mais abomináveis actos e omissões do Homem. Terá de existir sempre, em cada sociedade, um núcleo mínimo de referências, sob pena de a desagregação se erigir em princípio absoluto.
O enredo é perpassado por momentos de humor (v. g., «Don Giovanni: Falhaste, comendador, pelos vistos não tens nenhuma influência no governo do inferno. Talvez por estares no paraíso, talvez não haja linhas de comunicação.») e a mulher é, no final, de certo modo diabolizada («Leporello: (…) Deus e Diabo estão de acordo em querer o que a mulher quer.»), atendendo à época histórica que Saramago retrata ou, quiçá, a uma fina critica da concepção cristã do mundo, tão ao gosto das alfinetadas do escritor.
É também esta uma peça de estereótipos: o criado Leporello – «Aos criados mandam-nos que sejamos descarados, medrosos e cobardes. Não podemos ser outra coisa.»; a condição humana: «É um homem [Don Giovanni], nasceu com defeitos de homem e gostou deles.»; o pai de D. Ana, o Comendador estátua que não pode mentir, em busca da honra perdida da filha enganada (ou enganadora?). Reflectindo sobre a (in)justiça dos homens, Saramago utiliza ditados populares e mesmo uma espécie de «sabedoria de igreja» que, aliás, percorre a peça num tom de ironia, atendendo às próprias convicções do autor.
Para quem deseja ser um verdadeiro Don Giovanni, o conselho fica pela boca do próprio, terminando com a secular impossibilidade lógica de compreender a psicologia feminina: «Uma mulher que se negou uma vez poderá não negar-se segunda, mas nunca o faria por iniciativa própria, esperaria até que a rodeassem de novas súplicas, de novas implorações, em suma, de novas manobras de sedução. Então, sim, içaria a bandeira branca que já tinha preparada.»
5 comentários:
Venho agradecer a visita. Gostei do que vi, muita coisa para aprender. Não conheço este livro. Fiquei curiosa.
Eu Também!
Tenho imensa coisa na prateleira (cerca de vinte e cinco títulos em lista de espera), mas este vai já ppara a lista das compras!
CSD
obrigada pelo coment no meu blog
dei uma olhadela pelo teu e também está bastante agradavel =)
eu sou uma amante de textos expressivos e com sentimentos.. daí ter adorado a parte das poesias...
beijo
Gracias por tu visita es un placer tenerte de invitado...
Saramago é daqueles escribas que ou se adora ou se odeia. Afinal, como todos os grandes Homens da história da humanidade. Esta obra é daquelas que um dia hei-de conseguir levar à cena...
ps: obrigado pela visita ao teatro.
um abraço
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