segunda-feira, agosto 28, 2006

Post scriptum


Miguel de Unamuno, Um Homem, Europa-América, Mem Martins: 2003.

Miguel de Unamuno é, indiscutivelmente, um escritor de craveira no panorama literário espanhol do virar do séc. XIX e das primeiras décadas do século transacto. Reitor da Universidade de Salamanca, a sua obra mais aclamada – Vida de D. Quixote e Sancho (1905) – é um ensaio profundo sobre a obra-prima de Cervantes.
Em férias, tive a ocasião de ler um título, na verdade um conto, menos conhecido mas que, nem por isso, desmerece o autor. Um Homem (Un Hombre, no original), 1916, centra-se no paradoxo da beleza física e das venturas e desventuras a ela associadas. Filha de um homem praticamente arruinado, com negócios menos claros, a inigualável beleza da filha é o tesouro mais precioso que possui e, segundo crê, o salvo-conduto perfeito para a salvação financeira e social.
Contudo, Júlia Yañez sente-se uma mercadoria posta à venda e, quase desdenhando a beleza, tenta fugir de casa com rapazes que nela vêem um troféu e motivo de ufano. Surge, porém, um homem muito rico, desconhecido daquelas paragens, sem berço ou família conhecida, mas com uma força que se diria de um outro mundo, pronto a fazer seu tudo aquilo que deseja – Alexandre Gómez. Júlia não escapa a esta lógica e o fado da mulher-objecto concretiza-se.
Em vão procura ela perscrutar da existência de um verdadeiro amor por parte de Alexandre, para o que enceta um triângulo amoroso com o conde de Bordaviella, nobre tosco, moralmente asqueroso e que também nela vê a tábua de salvação de uma casta arruinada. Contudo, os ciúmes não chegam. Gómez diz ser «um grande homem», insensível a essas coisas e trata o conde com um paternalismo atroz, como um animal de companhia insignificante. Depois de a internar, Alexandre revela, em momento de doença grave de Júlia todo o seu amor. O relato é pungente, num homem de feições rudes e de coração duro que, após a morte da amada, segue-a para a eternidade.
Narrativa realista quanto à equivocidade da beleza, Um Homem formula o convite para que vejamos para além das aparências, num jogo interessante de sentimentos e sua demonstração. Impressiona a necessidade de Júlia, reflexo de todos nós, se sentir amada e que esse amor seja verbalizado.
Escrita simples, quase um espelho límpido em que contemplamos topoi caros à sociedade moderna: o físico, o ciúme, o amor, a loucura, as tramas complexas em que amiúde nos perdemos para captar a atenção e, como é óbvio, a inquietação do que significa ser «um grande homem».
Apetece rematar com um trecho da lírica de Unamuno (El cuerpo canta): El cuerpo canta;/la sangre aúlla; /la tierra charla;/la mar murmura; /el cielo calla y el hombre escucha.

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