quarta-feira, abril 25, 2007

Abril


Um povo rural, adormecido,
preso por grilhões de atavismo,
contemplando retratos poeirentos,
obrigado a venerar deuses impostos,
acorda em manhã simples, pura e grande.
Com armas nas ruas,
corações em sobressalto,
Capitães do sonho e da lembrança da guerra
anunciam «posto de comando»
de vontades, de fraternidade, em Grândola.
A Vila Morena e a azinheira
são campos de cravos que pululam
em espingardas, canhões, peitos agora abertos,
em vozes que gritam «Liberdade!».
Revolução quase sem mortos,
sem que muitos dela tivessem real consciência:
assim são as coisas exactas na vida dos Povos –
estão lá, omnipresentes, em hibernação,
apenas aguardando o retumbar dos tambores
para espreguiçarem a ditadura
e restituírem a escolha do caminho a seguir.
De inofensivos cravos nas mãos,
os Portugueses atónitos contemplam
esta esquecida palavra de cristal: «Liberdade!».
O que fazer com ela?
O que fazer dela?

Abril nunca estará cumprido.
Aí reside o seu extremo significado.
Tal como a perfeição, Abril
faz-se por aproximações sucessivas,
em jardins de cravos, e rosas, e orquídeas,
e papoilas, e margaridas, e flores campestres.
É nessa multiplicidade de cores
que ainda hoje dorme a força de Abril,
à espera do príncipe que ponha termo
à Letargia.
Este príncipe é o operário, o agricultor,
o professor, o profissional liberal, o militar.
Príncipe é quem queira de Abril
receber a capa da Fraternidade e abrir
auto-estradas de ilusão de duplo sentido,
vagas e precisas, abstractas e concretas.

Impossível cumprir Abril?
Quem disse que os sonhos se cumprem?

F.L.

10 comentários:

Thumbelina disse...

É verdade que os sonhos não se cumprem, mas também não precisamos de caminhar para o pesadelo...

SONY disse...

Sem dúvida..."Quem disse que os sonhos se cumprem?"
Viveremos nós hoje essa dita LIBERDADE?
Parece-me que és o único que em poucas palavras percebeste o que quis dizer!
Para bom entendedor meias palavras bastam :-)
Um bj Sony

x disse...

estremeci ao ler o poema e lembrei-me de uma coisa que li há uns dias. (...) «Respeitando o trabalho dos poetas e aceitando como plausível que esse é um domínio ao qual só se acede por uma espécie de epifania (algo como uma invisível picada de abelha, à qual eu fosse miseravelmente imune), fui mantendo os "versos" na gaveta, talvez à espera que o tempo passando lhes conferisse algum interesse, nem que fosse no sentido arqueológico do termo. Hoje, porém, estou convencido de que o esquecimento é o melhor destino que lhes posso dar, aos meus tristes e trôpegos poemas.»(...)manuel jorge marmelo -a doçura.
isto foi o que pensei em relação a mim, relativamente ao 'Abril' sei que é de um grande poeta. não tenho dúvidas e espero que nenhum "verso" fique na gaveta. parabéns.
viva a liberdade, sempre!

Joaninha disse...

Porque a "ideia de Abril" é sempre uma máquina em movimento. Um ponto de partida e não um ponto de chegada. E nisso estou de acordo com as palavras que aqui deixaste!

rtp disse...

Belo Poema sobre esta data importantíssima da nossa história. Palavras bem escolhidas para transmitir uma mensagem Verdadeira: a de que Abril tem de ser, todos os dias, construído. E, para tal, não pode ser esquecido NUNCA. As riquezas - não medidas em dinheiro e, por isso, mais valiosas - que nos legou têm de ser vigilantemente protegidas. Custaram muito a conquistar! Abril, sempre!

Serenidade disse...

Uma verdadeira homenagem ao Abril de hoje, de ontem de amanhã. Os sonhos comandam a vida, logo há que os manter eternamente.

Sereno sorriso

Letras de Babel disse...

não esquecemos abril.
mas de que se lembrarão os nossos filhos? em que exemplos se reverão?
que fazemos nós, hoje; os de 30, 40, 50 anos, para além de contas?
depois de escrevermos um poema, ouvirmos zeca afonso, anotarmos no calendário a próxima greve (de 1 dia, que o governo agradece), pensarmos que isto da globalização é um monstro com o qual não podemos medir forças, consultamos o saldo no banco e consideramos ser muito bom haver lá "algum".

números. é o que lhes deixamos.
sem a desculpa da inocência.

Anónimo disse...

O que nós "fizemos" aos nossos filhos está bem espelhado nos frutos( e pais) deste Blog, e outros, de jovens com que aprendo!
Demos lhe um mundo Livre, com uma globalização que lhes permite conhecer outros mundos e traze-los para o País, que tanto amamos.
Tanta coisa que lhes foi dada e permitida... Agora o MUNDO e este Portugal é deles, para o construirem. E, de certo, muito bem , como o demonstram estes post.´s :).
Obrigada FL pela sua poesia....
MARIA

filipelamas disse...

Obrigado a todos pela costumada simpatia e, em especial, à Xana e à Maria pelas palavras que muito me tocaram!

Thumbelina disse...

Eu, como parte de uma geração que (in)felizmente não soube o que foi viver Abril, agradeço à Maria as simpáticas palavras.
Agradeço porque não têm aquela arrogância de que usam muitos daqueles que o viveram, ao referir-se às gerações mais novas.
É verdade que os jovens não sentem o 25 de Abril da mesma forma que quem o viveu. Mas também é verdade que não o podem fazer pelo simples facto de o não terem vivido!!!
Há de facto, entre a "malta jove" aqueles pra quem o 25 de Abril é só "bué, porque não há aulas"...
Esses não sentem mas vivem (tal como eu) a Revolução todos os dias, em actos tão simples como um comment a um post ;-) E isso deveria ser suficiente para quem de facto ama a Liberdade, e traz na alma a Revolução.