terça-feira, abril 24, 2007

Curtas sobre Metragens - A pianista


Título original: «La Pianiste».
De Michael Haneke.
Com Isabelle Huppert, Benoît Magimel e Annie Girardot.
130 minutos.
Áustria/França.
2001.

Associada à viva recomendação que me fora feita deste filme vinha apenas a vaga advertência do seu peso, que o tornaria alegadamente indigesto para os estômagos mais sensíveis e optimistas. Na verdade, passadas algumas semanas, ainda não o consegui digerir inteiramente, mas também não creio na eficácia do poder catártico desta crónica!
O filme encontra a protagonista, Erika Kohut, nos seus quarenta anos. Professora de piano no Conservatório de Viena, ela vive ainda com a mãe, uma mulher dominadora que usa todos os meios para forçar a filha a atingir os objectivos desde cedo traçados: ser uma pianista genial e reconhecida como tal. São objectivos que exigem uma dedicação total à profissão, mesmo que esvaziem a protagonista de vida própria e tornem a relação mãe-filha insuportável e violenta: a mãe revista-lhe a carteira, controla-lhe os horários e destrói-lhe as roupas demasiado femininas. Cedo se percebe que os objectivos são da mãe e não da filha, que se sente subjugada. Pegando nas palavras de Michael Haneke, a família é o locus de uma guerra em miniatura. A pergunta que se impõe a cada instante é: por que é que Erika não se revolta?
A única fuga a este «outro mundo» que Erika empreende são as idas praticamente diárias a peep shows e sessões de cinema pornográfico. A sexualidade representa para ela uma libertação do domínio materno, mas nunca é vivida na primeira pessoa - sempre por intermédio das vivências dos outros. Ela respira, observa e consome um pouco da vida dos outros, na falta de uma vida própria. Esta atitude de voyerismo é acompanhada de um masoquismo que chega à auto-mutilação. Será para ver se é capaz de sentir algo? Curiosamente, quando encontra um aluno seu a espreitar revistas pornográficas, admoesta-o fortemente, considera-o um pervertido, humilha-o e ameaça-o. Tudo isto na sala de aula, claro, o seu território exíguo de poder. Na verdade, submissa ao poder da mãe, Erika faz questão de submeter à sua tirania os alunos que orienta, inspirando-lhes medo e provocando-lhes humilhações. Perante eles, ela é, ao mesmo tempo, uma pianista dotada e uma mulher gélida e inclemente.
A esperança parece, finalmente, surgir quando Walter Klemmer (interpretado de forma muito convincente por Benoît Magimel), um jovem estudante de piano, entra na vida de Erika. Fascinado pela professora quando a ouve interpretar Schubert, declara-se apaixonado e tenta por todos os meios seduzi-la, usando dois trunfos importantes: o seu ar irresistível e o seu talento aparentemente inato para o piano. Aqui começa, porém, um jogo de recíproca submissão e dominação que conduzirá, não à esperada salvação mas à destruição. Surpreendendo todas as expectativas de Walter, Erika cede às suas investidas, mas em vez de mostrar, pela primeira vez, alguma afectividade, traz à luz do dia todas as suas neuroses: o medo das emoções, o medo de perder o controlo e o medo de se submeter mais uma vez. Erika afirma que é desprovida de sentimentos e que, se algum dia vier a tê-los, eles nunca poderão vencer a sua inteligência. A sua reacção a estes medos é inesperada: Erika exige a Walter que a torture de forma cruel, de acordo com regras rigorosamente traçadas numa carta escrita, já que estes desejos são demasiado inconfessáveis para serem ditos. Ela assume o comando da «relação», exigindo a sua própria submissão! Confirma-se: também o sexo é um palco do poder. De ser amado, a personagem interpretada por Isabelle Huppert passa a ser abjecto, desprezado e incompreendido. No entanto, ela limita-se a transportar para a relação com Klemmer os elementos da violência, da submissão e da falta de afectividade, bem presentes na relação filial. Ela magoa e quer ser magoada, tal como terá aprendido durante a infância e a juventude.
E, afinal, tudo o que ela exige concretiza-se brutalmente, mas num momento em que, aparentemente, já nada deseja. As lágrimas que chora são verdadeiras e amargas. Já não encontra prazer na violência – só sofrimento. Somos confrontados com a perda de qualquer réstia de dignidade humana, com a degeneração completa. A pianista vive (a pedido) a experiência de uma mulher desprovida de todo o poder numa sociedade machista e repressiva. Porque é maltratada, maltrata e maltrata-se. Assim ela não vive, ela vai morrendo interiormente.
Isabelle Huppert desempenha com mestria o papel. Sem qualquer exuberância dramática, conduz-nos permanentemente para a penumbra que habita e impede-nos de desviar o olhar. Mergulha-nos na introspecção e aprisiona-nos na sua imobilidade. Choca-nos com a sinceridade das suas pulsões contraditórias e inconfessáveis.
Sabemos que o livro de Elfriede Jelinek, no qual se baseou o filme, é, em grande parte, autobiográfico. A mãe da escritora galardoada com o Prémio Nobel da Literatura em 2004 morreu aos 96 anos, completamente louca. Partilhavam a mesma casa em Viena, na qual a velha mulher, nos últimos tempos, proibira a entrada do genro. Tal como Erika, também a escritora tem uma sólida formação musical, na qual a mãe concentrou todas as suas ambições. Ao contrário daquela personagem, porém, Elfriede conseguiu escapar a este domínio.
Diferentemente do que sucede com o livro de Jellinek, que ainda recua ao passado de Erika na tentativa de explicar o presente, o filme de Michael Haneke nada explica, limitando-se a relatar experiências com o intuito de deixar ao espectador liberdade total para interpretar e tirar conclusões sobre o que vê. Trata-se, porém, de um presente envenenado: perante uma falta de explicação para a violência e para a perda do que é mais essencial no Homem, o espectador sente-se sem esperança, desalentado, desiludido. A ferida provocada pelos tempos que correm fica exposta: será este o resultado das constantes lutas de poder, da busca desenfreada do sucesso, da perda de solidariedade e do esvaziamento da importância da família e do afecto?

2 comentários:

filipelamas disse...

Viva!!!
A nossa rocky voltou!!
E de que forma!!
O filme que tão bem relatas também me impressionou bastante, exactamente pelo carácter asséptico com que a personagem parece encarar os sentimentos. Nada de mais errado. Ela está sedenta de emoções as quais nega a si própria devido ao enorme medo que sente de viver a sua vida sem a imagem e a presença da mãe castradora.
Um retrato muitíssimo bem tirado por ti, que vale mesmo a pena ser lido. Gostei, em especial, das acertadas reflexões sobre os espaços de poder.
Viva! A nossa rocky está "au point"!

rtp disse...

Muito bem! A Rocky voltou! E com um post muito interessante!
Percebo que ainda não tenhas digerido o filme!
A história nele servida é (bastante) indigesta.
Eu passei por um processo semelhante com a leitura do livro. Recebi - ao abrigo de uma tradição familiar que me proporciona, em cada ano, os livros publicados em Portugal pelo escritor agraciado com o Nobel da Literatura - de uma assentada vários livros de Jellinek . Comecei por “A pianista”, pois vinha acompanhado do filme.
Obedecendo à regra de ler sempre primeiro o livro e só depois ver o filme, lancei-me na leitura. Posso dizer que ela me foi proporcionando sentimentos diversos. O tom humorístico e o pendor crítico que vai imprimindo à narrativa o modo como encadeia os acontecimentos saindo muitas vezes do presente ao encontro do passado, relatando a infância da protagonista, tornaram a leitura muito aprazível. Nasce no leitor um misto de compreensão e comiseração pela jovem pianista.
A partir do momento em que a narradora se concentra no presente e nos descreve o quotidiano do ser estranho em que se tornara a menina que nos havia sido apresentada na primeira parte, o choque invade o leitor e desaloja qualquer outro sentimento.
Demorei muito a “digerir” o livro. Talvez, por isso, anestesiada pelo conhecimento da história (que não é devidamente, julgo, fornecido ao espectador), o processo de “digestão” do filme foi bastante rápido. Mais uma vez, a película ficou aquém do papel.
De qualquer modo, os outros livros de Jellinek ficaram na estante. Talvez me abalance agora, três anos volvidos, à leitura de “Lust”.