domingo, fevereiro 11, 2007

Esboço (I)


Escutava um CD com as Sonatas para piano de Mozart. Oferecera-lho um grande Amigo. O dedilhar de Alfred Brendel correspondia ao tom borbulhante que a si mesmo dera nesse dia. Chovia lá fora e a casa estava deserta. Aparte um punhado de livros poeirentos e uma garrafa de whisky meio cheia, o ambiente era soturno, grotesco, escancarado para uma janela imaginária onde a condição do seu ser em nada contradizia a pungente das notas arrancadas. O computador mantinha-o em contacto com o mundo. Contacto? Com quem?
Verteu puro malte no copo de promoção que a empregada lhe trouxera. Ao encharcar o estômago com aquele líquido sentiu-se estamagado. De súbito, tudo era pequeno, reduzido, minúsculo. Mesmo Mozart. Ria-se em som estridente e louco. O pequeno Mozart armado em génio a um piano arvorado em actor de mignotage da sociedade coeva. Também ele o fora na casa de campo de um casal que se dizia “progenitor”, entoando harmónicas composições campestres para gáudio das “forças vivas” da aldeia. O cura pretendia-o no coro de vozes angelicais, mas ele ansiava por correr mundo. Partiu um dia, renunciando logo ser “filho pródigo”. “A “prodigalidade” só existe se lhe atribuirmos o sentido que os outros dela pretendem”, ouvira a um professor monocórdico de Retórica em Milão.
Entrava-se agora na segunda faixa do CD. O tom desanuviava e o afastamento de si enobrecia o carácter. Ligaria a uma velha conhecida. Falaria sem sentido, pelo gosto de sentir ofegantes palavras do outro lado da linha. Encadeado, agrilhoado às palavras que o comprometiam, pintava de vermelho o espaço em volta com figuras geométricas sugeridas por movimentos neo-realistas.
Gostava de “movimentos”. Faziam-no pertencer a qualquer coisa. Talvez por isso coleccionasse cartões: de clubes, partidos, escolas, lojas, bancos. Os sms pululavam com promoções de 40% para clientes exclusivos. As marcas “gold” e “prestige” acomodavam-lhe o pensamento a um etéreo céu de consumismo que o apartava do consumo de si mesmo.
Consumo e contacto”. Duas palavras a eliminar do seu vernáculo dicionário. Assim o escrevera num guardanapo que a seu lado repousava depois de uma estóica luta com lábios manchados de mostarda.

6 comentários:

Claudia Sousa Dias disse...

Belo texto. Para seduzir os mais exigentes melómanos.

CSD

Unknown disse...

A preposito de que ? lol
Belo texto obrigado por me teres visitado
bj

Maria Ostra disse...

Olá,
obrigada pela visita...
Gostei do blogue.
Vou voltar!

marta ré disse...

Boa noite,
Agradeço-te a visita!Já passei por aqui algumas vezes e gosto do que leio!

Fica bem.

Pedaços de mim disse...

Boa noite,

Obrigado pela visita que ao de leve me fez passar por aqui,
gostei da 2º faixa do CD…
dos sons que se perdem ao sabor de um whisky,
que altera a mais pequena nota de musica que afinal não passa
de uma recordação….
Terá ele guardado aquele bendito guardanapo no bolso do casaco no Inverno passado
e já não se lembre?
Queria eu saber como foi ouvir o resto daquelas faixas todas,
Que recados ou conselhos nos teria para dar?

:)

rtp disse...

Muito bem! Fica, de facto, a vontade de ouvir as restantes faixas!