Original de 1930.
Publicações D. Quixote, 1988, 4,99 €.
A escrita bebe-se de um trago, ante a fluência e limpidez das palavras e o carácter subliminar da mensagem. No conto Mário e o Mágico tudo está eivado de um segundo sentido que convida o leitor a emaranhar-se na História e a perceber pontos de contacto com as maiores atrocidades cometidas na II Grande Guerra. Não tivesse sido o livro publicado em 1930 e tendo como pano de fundo a Itália fascista («a praia fervilhava de crianças patriotas – um fenómeno contranatura e arrasador»).
Pelas lentes de uma família austríaca que passa férias, em Setembro, numa estância balnear italiana – Torre de Venere –, sentimo-nos incomodados com os olhares reprovadores e sobranceiros que, mesmo em um nível social alto, nos são lançados por quem nos vê como extranei.
Pelo meio, verificações filosóficas: «é sabido que o mundo procura a tranquilidade e afugenta-a ao lançar-se sobre ela numa ânsia ridícula»; «um certo poeta disse que a inércia é que nos amarra a situações penosas» e ditadores de 12 anos: «esse rapaz (…) era um dos pilares de uma mentalidade colectiva que, embora dificilmente palpável, pairava no ar» (porventura já em 1930 algumas crianças fossem tiranos aos quais os pais obedecem como se de um Rei Sol se tratasse).
Grande parte da obra descreve, com extraordinário realismo, a actuação de Cavaliere Cipolla, o mágico (forzatore, illusionista, prestidigitatore) que, perante o clamor e admiração da sala, vai realizando os seus truques, vai humilhando, reprovando comportamentos, hipnotizando. Tudo, por rectas contas, o que os totalitarismos põem
Retém-se o passe de mágica com a Sra. Angioleri, dona da Pensão Eleonora onde a família está hospedada e que se ufana por ter contactos com a irmã de Il Duce. O sarcasmo que Mann dedica à relação matrimonial, ao transformar o marido da estalajadeira em um animal que choraminga pela mão que o alimenta, ridiculariza, em geral, os contactos humanos e, do mesmo passo, mostra-os com toda a sua crueza: relações entre seres incompletos e inseguros.
O modo como Thomas Mann termina o enredo sublima o Homem, é o momento catártico que em surdina se ia desejando com o ardor da Liberdade. Mais ainda porque esse desagrilhoamento dá-se por intermédio de Mário, um giovanotto, pobre empregado de mesa do café Esquisito, de olhar doce e de sorriso fácil, enfim confrontado com o conhecimento público do seu amor julgado secreto: Silvestra. É por desonra que o mágico é morto; é por via da emoção que a Humanidade é salva.
Mann homenageia os verdadeiros heróis: os que a História teima em condenar à penumbra, ostentando, nos anais, à frente de um acontecimento, aquele ou aqueles que detêm o poder. O poder que faz claudicar o poder anterior. Sempre assim foi e sempre assim será.
Ao fim e ao cabo, Thomas Mann tudo resume – pela voz de Cipolla – à vetusta questão do (in)determinismo: «A liberdade existe e também a vontade existe; porém, o livre arbítrio não existe, pois uma vontade que tenha por alvo a sua própria liberdade embaterá no vácuo». Interpela-nos ainda com a afirmação apodíctica: «ordenar e obedecer constituem juntas apenas um princípio, uma unidade indissolúvel; quem sabe obedecer sabe também mandar e vice-versa; um pensamento está implícito no outro, assim como o povo e o seu líder estão implícitos um no outro». Dá que pensar!
PS ao post scriptum: agradeço ao amigo Joe o comodato do livro! Como a imagem do conto não estava disponível no sítio da editora, optei por colocar a capa do original. Claro: li em Português; o meu Alemão é muitíssimo arcaico...
2 comentários:
Não podia deixar de comentar a expressão "comodato do livro". Jurista que é jurista transparece em tudo o que escreve!!
Uma apreciação consistente de um livro que ainda não li...
"Comodato do livro" é lindo!!!
Ass.: O Comodoro, aliás, comodante.
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