sexta-feira, novembro 03, 2006

Maçaneta

Estava a ficar velha. Gasta pelo uso. A maçaneta já só era levemente dourada. Quantas mãos a rodaram ao longo destes mais de vinte anos! As de uma criança inocente, de jeito manso e delicado, com um coração puro e os sonhos intactos; as da criada a tresandar a fritos, em movimento rápido, seguro, porém medroso e sempre a temer o quadro que eu iria permitir ver; as da jovem rapariga, finas, esbeltas, magras, transpiradas por uma áurea de inocência perdida depois de encontros fortuitos; as de um velho de dedos grossos e que me magoavam, nunca acertando com o sentido da volta – sempre para a esquerda quando eu abro para a direita. Sim, muitas mãos passaram pelo meu corpo sem disso darem mínima conta. Sou apenas um objecto com a utilidade de passar de uma divisão para a outra. Esquecem que eu sou uma espécie de Jano, mirando cada uma das salas que separo juntamente com a porta em que vivo. Ouvi hoje um rumor de que amanhã vou ser mudada. Por uma maçaneta mais nova, daquelas modernas que nem parecem maçanetas. Foi aquele invejoso cabide que mo disse. Por isso, esta noite, quando o jantar estiver para ser servido, vou colocar o meu melhor vestido e o meu mais franco sorriso e deixar passar a suculenta refeição. Alguém me recordará então não como um objecto mas como uma presença que se sente e é sentida.

3 comentários:

rocky disse...

Julgo que nunca mais olharei uma maçaneta da mesma maneira depois deste post. Na verdade, há tantas coisas... e, sobretudo, tantas pessoas às quais não prestamos a mínima atenção. Vemo-las demasiadas vezes como pessoas cuja missão é desempenhar um papel auxiliar na nossa própria vida, pelo que, para além desse magro papel, são para nós destituídas de vida. Outras, não desempenhando embora esse papel secundário, nem sequer chegam a despertar o nosso interesse por não falarem da forma esperada, não dizerem as coisas esperadas, não ostentarem o aspecto esperado. Todos criticamos a coisificação dos Homens, mas todos a praticamos diariamente.
Por isso, todos os dias tento mudar a perspectiva do meu olhar sobre as maçanetas em que toco.

ELA disse...

As maçanetas contam as histórias das mãos gastas pelas memórias que viveram.

rtp disse...

Quem diria! A riqueza interior que uma maçaneta pode encerrar! Que belas entidades capazes de profundas reflexões! Vou passar a prestar mais atenção ao diálogo mudo que com cada maçaneta pode ser entablado. Ou isso... ou a maçaneta em questão era uma verdadeira poetisa. :-)
Temo que já não se façam maçanetas assim!
Muito bem, filipelamas!