Deixara a bengala no quarto que partilhava com um espanhol ainda mais velho, daqueles que se gabava de ter combatido na Guerra Civil e que, sempre que recebia uma carta de um tal familiar, lamentava a perda do Império, a entrada na União Europeia e o fim do domínio na América Latina. Tipo chato, este! Ainda por cima largava-se com frequência, tornando irrespirável o ar já de si abafado daquele retiro obrigatório.
De que se queixava, afinal? Tinha quem o lavasse, quem o alimentasse, quem lhe fizesse a cama e lhe desse o “cocktail” que o mantinha vivo. Vivo? Ao menos com o coração a bater.
Finalmente saíra. Sem deixar aviso. O frio ar do final de tarde em que a luz tão renitentemente aparecida durante o dia se despedia num beijo plácido entrava-lhe agora, sem pedir licença, pelas fossas nasais outrora atraentes. Poderá haver atracção pelas fossas nasais? Quando se é novo, tudo é atraente e belo e apetitosamente degustável… Sempre fora um velho lívido e libidinoso… Sempre fora velho! Mesmo quando dera o primeiro grito fora do ventre materno, parecia ser a voz de um ancião que, descobrindo mais uma verruga na ponta do nariz, lamentava a existência dos espelhos.
Pulmões gelados, cara fria, pés com medo de pisar solo duro e desconhecido. Avistava ao longe uma torre medieval com um relógio dourado apontando as cinco horas. À medida que conquistava centímetros à rua, ia tomando consciência do seu corpo e, miraculosamente, do motivo que o prendia àquela pequena vila de Vianen. Tinha todos os condimentos para se tornar o “El Dorado” dos velhos oprimidos que haviam desperdiçado uma vida entre dinheiro e o modo de o fazer. Fizera dinheiro. Onde estaria ele agora? Havia recebido um panfleto por via do espanhol em que se anunciava uma fundação com o seu nome, responsável por uma daquelas exposições de arte pseudo-culturais em que perceptível é, apenas, o nome do artista e a data de nascimento. Sim, este tipo de “artistas” não tem data aprazada para morrer.
(Continua)
1 comentário:
Espero pela continuação...
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