segunda-feira, novembro 24, 2008

A Lista (parte I)

Saía pela primeira vez em meses da gaiola dourada em que se encontrava. Enregelado, com artroses pelo corpo gasto, pôs um gorro de lã vermelha (haveria lã vermelha?) e um cachecol em padrões indizíveis, daqueles que só este Povo que agora o acolhia podia ter sequer imaginado.

Deixara a bengala no quarto que partilhava com um espanhol ainda mais velho, daqueles que se gabava de ter combatido na Guerra Civil e que, sempre que recebia uma carta de um tal familiar, lamentava a perda do Império, a entrada na União Europeia e o fim do domínio na América Latina. Tipo chato, este! Ainda por cima largava-se com frequência, tornando irrespirável o ar já de si abafado daquele retiro obrigatório.

De que se queixava, afinal? Tinha quem o lavasse, quem o alimentasse, quem lhe fizesse a cama e lhe desse o “cocktail” que o mantinha vivo. Vivo? Ao menos com o coração a bater.

Finalmente saíra. Sem deixar aviso. O frio ar do final de tarde em que a luz tão renitentemente aparecida durante o dia se despedia num beijo plácido entrava-lhe agora, sem pedir licença, pelas fossas nasais outrora atraentes. Poderá haver atracção pelas fossas nasais? Quando se é novo, tudo é atraente e belo e apetitosamente degustável… Sempre fora um velho lívido e libidinoso… Sempre fora velho! Mesmo quando dera o primeiro grito fora do ventre materno, parecia ser a voz de um ancião que, descobrindo mais uma verruga na ponta do nariz, lamentava a existência dos espelhos.

Pulmões gelados, cara fria, pés com medo de pisar solo duro e desconhecido. Avistava ao longe uma torre medieval com um relógio dourado apontando as cinco horas. À medida que conquistava centímetros à rua, ia tomando consciência do seu corpo e, miraculosamente, do motivo que o prendia àquela pequena vila de Vianen. Tinha todos os condimentos para se tornar o “El Dorado” dos velhos oprimidos que haviam desperdiçado uma vida entre dinheiro e o modo de o fazer. Fizera dinheiro. Onde estaria ele agora? Havia recebido um panfleto por via do espanhol em que se anunciava uma fundação com o seu nome, responsável por uma daquelas exposições de arte pseudo-culturais em que perceptível é, apenas, o nome do artista e a data de nascimento. Sim, este tipo de “artistas” não tem data aprazada para morrer.

(Continua)

1 comentário:

O Micróbio II disse...

Espero pela continuação...