sábado, março 01, 2008

Útil e inútil

Útil e inútil.

Ainda se mantinha com aquelas duas palavras na cabeça debitadas do rádio-despertador que lhe infligia o horror matinal de acordar maldisposto.

Não lhe tinha vindo à ideia a dicotomia que agora o voltava a atormentar durante o duche, momento em que o seu cérebro, após o torpor nocturno, parecia acordar e regalá-lo com brilhantes expressões, com tralha para fazer, assuntos a não esquecer e, até, pasme-se com sonhos mirabolantes. Pois, nisso dava não sonhar durante a noite.

A caminho do escritório, embrenhado em cálculos mentais para pôr a porcaria da fabriqueta a render mais uns cobres e a competir (tinha sido isso que o Primeiro afirmara em entrevista recente àquela finguelas que tem a mania que é esperta, não fora?) com os tigres (que raio de nome! Pareciam mais umas sanguessugas!) do oriente, numa rubrica de saúde, o médico de serviço (dos poucos que ainda trabalhava em urgências… como gostava ele de meter uma bucha política em tudo o que era pensamento! À sua maneira era um grito de revolta, cansativo que seria inscrever-se num sindicato ou coisa assim) dizia que era útil comer vegetais.

Sim, sim, comer vegetais. Já agora, praticar exercício físico, não comer carne, só peixinho cozido ou grelhado, não fumar, não beber, não ter sexo. Enfim, aquelas tretas que os médicos debitam e não cumprem por saberem que deixariam de ser humanos caso o fizessem.

Se bem que, deixar de ser humano depois da tampa de ontem era muito tentador. Também quem é que ia adivinhar que a tipa com ar de santinha afinal era uma interesseira que só queria uma porcaria de emprego de secretária na fabriqueta nos arrabaldes da cidade? Nem era muito bem paga…

«A taxa de desemprego voltou a subir. A Comissão Europeia recomenda…»

Bem, esta tipa da rádio anda a ler-me os pensamentos! E os bacanos da Comissão se mandassem em vez de recomendar, as coisas estariam melhor. Como diz o X, esse grande intelectualóide de esquerda punhos de renda, era importar políticos! Assim como assim, já importamos tudo e não nos importamos nada…

Ai a filha da mãe da jeitosa que estancou no amarelo! Será que esta gente não tem pressa de chegar ao trabalho? Não deve ir trabalhar… A avaliar pela bomba que tem nas mãos, deve ser dessas dondocas que só levam os pirralhos ao colégio…

Isso, agora espana por aí fora…

Fazia então bem à saúde comer vegetais. Era útil, pelo menos a quem desejasse viver mais uns anos. E valeria a pena? O aquecimento global, o degelo, o efeito de estufa e essas coisas todas que os ambientalistas agora erguem como bandeiras e que até dão prémios a ex-presidentes do maior poluidor mundial, tornariam útil a vida neste planeta? E útil era o quê, afinal? Que jeito lhe dava ter estado mais atento às aulas da stôra de Filosofia do secundário, em vez de espreitar pelo decote da Y, com um belo par de matéria-prima pronta a sair daquele top musculado que agrilhoava aquelas hormonas prontas a encontrar abrigo no seu acne borbulhoso. Hum, que imagem linda…

Desligou a ficha e ligou à terra onde não se pensava em nada, mas simplesmente se acompanhava a mudança de velocidades com uma carregadela na embraiagem do citadino barato que lhe servia de lata e que comprara em suaves prestações mensais a uma TAED estupidamente elevada com o dinheiro que a avó (que Deus a tenha em eterno descanso) lhe havia deixado em boa hora às portas da morte. Esta de a morte ter portas faz dela uma espécie de casa, talvez mesmo com janelas, móveis, biblots, carpetes, cortinados, portiers. Quem morará nessa casa? O Diabo? O Diabo e os Santos em alegre convívio? Sorrira levemente, erguendo o lábio superior daquela maneira sexy que usava como arma de arremesso sempre que conhecia uma miúda nova. Mas não queria desenvolver a ideia da morte, de uma casa e de um eventual paralelismo sórdido entre o fim da vida e bairros pobres ou chiques. Deixaria isso para quem, àquela mesma hora, estaticamente na China, estaria a ter a mesmíssima ideia, só que em outra língua, ou melhor, em outro idioma que se projectava em ondas sonoras que ecoavam na caixa craniana pois, ao que consta e ele se apercebesse, o seu pensamento ainda não fazia barulho.

Entrara no edifício, designação demasiado simpática para um casebre em madeira e tijolos já velhos que albergavam dois recém-licenciados que estavam para descobrir aquela fórmula que faria do algodão importado uma espécie de seda mais barata e que lhe daria a tal vantagem competitiva. Pelo menos assim gostava de pensar ao vê-los embrenhados em pipetas e tubos de ensaio. Mesmo que tal não acontecesse, os miúdos ficavam baratos com os programas governamentais que existiam, reforçados em véspera de eleições. Benditas manifestações soberanas do poder do Povo escolher livremente, em sufrágio directo e universal, os seus lídimos representantes na casa comum da Democracia!

Que belo discurso! A minha mãe sempre disse que eu estava bem era na política…

2 comentários:

Anónimo disse...

Gostei muito dos exemplos de prosa. Vem aí o Breviário II?

filipelamas disse...

Estou em treinos!:)