sábado, setembro 15, 2007

Bartók e a imensidão do abismo

Um cenário de sete portas fechadas em clima sombrio num castelo de um duque, de sua graça “Barba Azul”. O nobre e a sua quarta mulher, Judith, chegam ao desejado lar, deixando ela para trás um jovem príncipe. O duque deveras apreensivo com o conhecimento da sua personalidade que o castelo revelará àquela que foi conquistada à meia-noite e que se prepara para descobrir quem é o homem atrás do título nobiliárquico.

Tudo é lúgubre, soturno, triste. Judith reclama a abertura das portas que guardam segredos malquistos, ante um duque que oscila entre o terror e o infindo desejo de se revelar. As portas vão sendo abertas: uma câmara de tortura, uma sala de armas, uma sala de tesouros, um magnífico jardim de flores coloridas, a vista para o Reino, o Império, um lago de águas calmas e cinzentas e, finalmente, as três anteriores mulheres, aprisionadas, misto de realidade e recordação.

Cada uma delas representa fases diversas da vida: a juventude, a idade adulta, a dita “média idade” e, ao que parece, a Judith está destinado o papel de quadratura do círculo, de mulher juntamente a quem se espera a morte em doce enlevo.

O simbolismo é uma constante, através da aparente simplicidade com que Béla Bartók nos brinda. Tida como uma das mais representativas óperas em um acto da centúria passada, nela perpassa um pessimismo antropológico exponencialmente elevado. A Humanidade, apesar dos erros que comete, mesmo deles tendo consciência, reincide. Cada vez mais.

Hino à prisão das fantasias, a um certo “locus horrendus” temperado por períodos de “locus amoenus” em que o sentimento sobrepõe a razão, “O Castelo do Duque Barba Azul” assume-se como obra puritana, como crítica de costumes, ao condenar a riqueza, o poder, a opulência, a crueldade. Mesmo os ambientes naturais são regados por sangue inocente. Incomoda o pecado que Bartók associa a manifestações hedonistas, principalmente em uma época em que o momentâneo é a cultura dominante.

Lembra Soren Kierkegaard, o seu radicalismo religioso, a “ponte” que lançava para o reino do bem, o isolacionismo humano no meio da multidão tentadora. Lembra os castelos em que nos fechamos e de cujas ameias contemplamos altivos o mundo.

A altivez e a proximidade que sentimos da figura do duque humano, finito, imperfeito. Este o paradoxo que trouxe comigo depois de ter assistido a esta ópera na nossa Casa da Música.

3 comentários:

x disse...

adorei o texto. senti cada momento da ópera. a imponência intermitente da música, a tragédia anunciada,o cenário simples de uma beleza anacrónica, a vontade de passar a mão pelo rosto do barba azul. tão humano na sua imperfeição.gostei muito e não posso deixar de me lembrar da noite maravilhosa que sucedeu ao espectáculo.amigas húngaras, petiscos holandeses a meio da noite, conversas interessantes, a música mais próxima pela partilha com os músicos da ONP que também apareceram e a explicação da expressão 'xpto'. foi uma noite inesquecível. foi um espectáculo para relembrar, sempre. obrigada pelo texto*

rtp disse...

Gostei MUITO de ler este post! Muito bem, filipelamas as usual! :-)
Gostei muito do espectáculo! Adorei o libreto. As palavras encerravam uma multiplicidade de significações! O final, para mim, foi desconcertante!

joaquim.guilherme.blanc disse...

Excelente revisão!
Não fiquei encantado com a ópera, para ser sincero, ao contrário das pessoas com quem fui, bem mais entendidas na matéria do que eu. O problema esteve em mim, portanto. Achei a composição músical boa, mas amena, e o texto interessate, mas deslocado da época. O cenário achei bonito mas a instalação do Cabrita não me convenceu, mais uma vez. Gostei bastante do baixo e da figura dele, mas a cantora achei vulgar...