segunda-feira, agosto 13, 2007

A escada, o rissol e o recado


A escada continuava íngreme, em madeira, alcatifada a linóleo verde petróleo e ornada de pedaços de plástico preto. Estava ainda mais puída e brilhante que nunca. O corrimão do lado esquerdo ostentava buracos de bicho-da-madeira e o castanho desbotado do sol que vinha da rua reflectia-se no tecto de estuque branco trabalhado, pintalgado por colónias de líquenes, bactérias, humidades e fungos. Os desenhos mantinham-se em formas florais, com pedaços em falta. O mesmo pedinte andrajoso à entrada, agora com mais cabelos brancos e com uma máscara de pano a impedir o contacto do e com o mundo.
Subi duas escadas com o coração aos pulos. Recuei 15 anos e senti-me de novo o miúdo filho da costureira que vai no autocarro buscar um corte de tecido, uma amostra, um figurino italiano ou francês que acaba de chegar para as clientes supostamente ricas verem e escolherem o que a D. Fernanda iria realizar na perfeição, curvada sobre panos, dedais, linhas, torçais, botões, agulhas, máquina de coser, chuleado, ponteado, ziguezagueado, mangas a três quartos, vestidos de roda, “capelines”… Toda uma parafernália de instrumentos e de tecidos, tafetás, chumaços, fechos.
A placa lá continuava por cima da minha cabeça “Manuel Queiroz. Tecidos”. O mesmo “z” mantinha o toque de antigo; as letras madrepérola contra um fundo preto já a fugir para o cinzento, afastada da parede por uma corrente de dourado duvidoso.
O mesmo ranger das escadas continuava a dar para uma porta cor-de-vinho, que se abre e faz tremer ainda mais a escadaria. Para trás a Rua Formosa e o bulício das obras que agora, como antes, continuam (o Porto é, de facto, a cidade sempre em obras!).
Três divisões iguais, com ripas de madeira com falhas a fazer de chão. Os tecidos de mil cores entulhados e mal dobrados, a grande janela de vidros batidos pelo tempo a dar para o prédio vizinho a escassos metros.
Só a D. Laurinda já lá não estava. Mas estava a Juca! Dizia-me ela que grande eu estava, que diferente do miúdo que lá ia. Que agora já devia ser doutor… Não, sou o mesmo que cá vinha há mais de quinze anos! E a sua mãezinha? Ainda trabalha? Cada vez com menos gente, não é, que a gente nova gosta mais de ir ao pronto-a-vestir… É verdade, mas mantêm-se umas resistentes… Ainda lá vai aquela senhora a quem tiraram um peitinho, salvo seja? Sim, vai. Coitadinha, tão boa senhora…
Lá cortou o tecido, lá fez o papelinho para levar à mãezinha, a atençãozinha por ser cliente de há tantos anos. O beijinho da praxe – sim, parecia que o tempo não passara – e voltei costas àquele lugar do Porto perdido, da minha infância. Ao descer as escadas e colocar o pé na rua acabei por me enganar. O cheiro do rissol que era a paga pelo recado que fazia tinha-me levado para a antiga paragem no Bolhão, para apanhar os antigos 9, 29 ou 59. Qualquer um deles dava. Mas não. Nem o autocarro ali passava mais, nem a confeitaria existia. É agora uma grande loja de roupa, daquelas incaracterísticas e que vemos em qualquer cidade do Mundo.
Aquele pequeno mundo da senha do autocarro, do rissol quentinho comido com sabor a óleo requentado, o chegar a casa com a sensação de missão cumprida. O afago que dizia “A D. Laurinda diz que és muito educadinho!”… Como foi bom voltar a ser pequenino!

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