sexta-feira, abril 27, 2007

O mesmo


Metropolis, George Grosz, 1916-17, Museo Thyssen-Bornemisza, Madrid.

Toquei hoje o limite do céu,
do azul, do cinzento, do negro.
Viajei em espumas de nuvens fofinhas
ao acordar de noite tormentosa.
Não era eu quem ia ao leme,
nem representava um povo;
tão-pouco ia a mando de um rei.
Ia. Navegava. Naufragava.
Quando as carótidas incharam
até rebentar,
uma fada madrasta despertou-me
para de novo me embalar,
agora em dia final de Abril
a caminho de um trabalho que mais não posso suportar.
A janela do carro aberta até ao fim
invade o fato que tenho como cruzeta
de um odor a cidade poluída.
Não noto a diferença.
A poluição corre-me nas veias,
num sorriso forçado, num aperto de mão fingido.
Desaperto o nó da gravata ao passar
pela ilha e pelo bairro social
que a sociedade tanto evita.
Oiço aí risos. Sem mais nada.
Só risos.
Ao tempo que não me rio!
Ou melhor, ao tempo que do sorriso
não tiro um riso. Sincero. Amigo. Libertador.
Em pedaços de latas mais ou menos requintadas
ouvem-se as mesmas músicas escolhidas por outros,
as mesmas notícias inventadas por outros,
as mesmas mezinhas para as maleitas modernas,
inventadas por outros.

Nós e os outros –
é este o único sentimento de pertença
que nos resta.
Fazer parte de um grupo,
mesmo sem cartão de militante, sócio, associado,
filiado, fundador, aluno, docente, doente.

E os outros andam nas mesmas latas,
ouvem as mesmas músicas,
comem as mesmas notícias,
têm os mesmos cartões,
apenas de díspares cores.
Sua Excelência A Mesmidade!
Sua Excelência O Marasmo!

O semáforo está verde.
Vai, em direcção ao mesmo!

F.L.

9 comentários:

P disse...

"Ao tempo que não me rio!
Ou melhor, ao tempo que do sorriso
não tiro um riso. Sincero. Amigo. Libertador."
Libertemo-no, ainda que pela escrita. Seja ela a nossa lágrima e o nosso riso, e tudo num só acto. Não nos controlemos ao escrever. Façamos disso a nossa arma, feita dos excessos que nos fazem mais humanos, com todo o calor e todo o frio do mundo.
Um grande abraço

C disse...

carótidas inchadas? que erotismo que aqui vai! muito bom o poema.
aproveito pra publicitar o meu novo blog: hcpa.blogspot.com

Amândio Sereno disse...

É realmente assustador pensar que cada vez mais nos aproximamos do Adimrável Mundo Novo, profetizado (?) por Huxley.

rtp disse...

Belo poema!
Produto e produtor de uma reflexão profunda!
Destacaria precisamente a passagem que Baudolino transcreve. Muito linda!
A referência ao sorriso, ao riso, fez-me recordar uma música que acabei de postar.
:-)

verde disse...

Muito bom o poema, como sempre :)

Quanto a Aldous Huxley, retrata de facto bem a realidade mecanizada e sombria de uma sociedade em que os seres precisam de "soma", uma substância para se rirem. Algo semelhante ao prozac actual :)
Huxley só falha na mecanização humana. O Homem é tão fantásticamente complexo e diferente, tão diverso na sua profundidade, que a mecanização se torna, na realidade, impossível.

Interessante. Como é possível a rotina quando o homem é cada vez mais inquieto, quando anseia cada vez mais por um crescimento interior? Interessante como coexiste a rotina com a actual vida recheada de incessante mudança e desafios. Será a rotina da mudança?

Anónimo disse...

"espumas de nuvens fofinhas" :)

Joaninha disse...

Sem ter lido o teu, também o mote "o mesmo" serviu de ponto de partida para o meu último post. Mas o teu é bem mais poético (como já nos habituaste)e muito bem escrito. Parabéns!

Serenidade disse...

"Vai em direcção ao mesmo" ao seu Ser que se quer expandir para além do marasmo e da mesmidade do material e passar ao surreal.

Muito bonito, como sempre.

Bom fim de semana.

Serenos sorrisos.

Anónimo disse...

A escrita as ideias, o voluntarismo, a noção de cidadania...só podia ser O poema de grande poeta....Um grande abraço