quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Palco das Letras - "A última gravação de Krapp"

Uma secretária. Sobre ela um gravador antigo onde se destaca, proeminente, um microfone. Acima deles pende um candeeiro, que os cobre de luz. Apenas a eles. Sobre o resto do espaço a noite derrama a escuridão. Estamos no andar de cima da Livraria Lello, transformado em palco às sextas e sábados, a partir das 21h30. Estamos nós, doze espectadores (o que, in casu, constitui já sobre-lotação). A nós vem juntar-se um sorumbático e meditativo Krapp, para a sua última gravação.
Percorre o pequeno espaço do improvisado palco, comendo bananas (?), quando algo o desperta da soturnidade. Animado de uma estranha energia, segue as coordenadas 3, 5. Três é o número de uma caixa, cinco é o número de uma bobine (Bobiiiiiiine, como insistentemente lhes chama). Instala-se, procura comodidade – livra-se, com uma sacudidela de braço, de todas as outras caixas contendo bobines – e começa a rebobinar o passado. Recua três décadas, atingindo o dia em que celebrava 39 anos. Ouve-se. Ouve a sua voz. Uma voz mais forte e pomposa. Mais nova. Ela recorda-lhe a compra do candeeiro – aquele que ainda ali está – e que quebrando "toda a escuridão à sua volta" o fez (faz) sentir-se menos só.
Vai rememorando o passado, seleccionando memórias e emoções. Avança as menos boas, ouve repetidamente as mais agradáveis. Krapp (quase) não age, (apenas) reage ao já vivido. E, nós, vamos assistindo ao caleidoscópio de emoções, através das suas expressões. Nós e os livros – todos os livros. Apenas um – um dicionário – assume, por breves instantes, algum protagonismo, desvendando o significado de "viduidade".
Ouve-se, lá fora, uma autocarro que passa. Sinal de vida, de acção. Mas Krapp, como na sua gravação, permanece quieto, enquanto o mundo em volta se move e o move.
A voz gravada evoca resoluções incumpridas. Escarnece das aspirações antigas. Por entre o desfile de lamentos, Krapp vislumbra "o momento mais feliz dos últimos quinhentos mil momentos". Ouve o seu relato repetidamente. Revive-o uma e outra vez.
Desconcerta-nos quando, quebrando o seu choro de lamúrias, à pergunta "Reviver?" responde veementemente "Não!", ou quando se auto-impõe a repressão das suas doces quimeras.
Afirmação e ordem vãs. De novo, mergulha nas lembranças, lançando a questão que o verdadeiramente tortura. Podia ter sido feliz?. Podia?
Sempre na dúvida, tira a bobine e coloca outra. Esta, a estrear. Grava a sua última gravação. Porque precisa de ser, "ser outra vez, ser outra vez.". Poucas são as palavras ditas. As derradeiras, no entanto, muito significativas: "talvez os melhores anos já tenham passado. Aqueles em que havia uma chance de felicidade. Mas não os queria de volta. Não com o fogo, em mim, agora. Não, não os queria de volta."
Depois vem o silêncio. Acendem-se as luzes. A "Última gravação de Krapp" terminara.

Jorge Pinto, actor, um muito verosímil Krapp, recebe os aplausos merecidos. Coube-lhe, não só a interpretação, como também a tradução do texto de Samuel Beckett (1958) e a encenação.

Até 24 de Fevereiro. Na Livraria Lello, às sextas e sábados, às 21h30. Por 7.50 €. Com uma duração de cerca de uma hora. É conveniente reservar.

6 comentários:

filipelamas disse...

Fiquei com vontade de ir ver!

Claudia Sousa Dias disse...

Estou com aquela curiosidade típica dos gatos que farejam o ratinho no meio do sótão atafulhado de livros...

;-)

só conheço ainda o rés-do-chão da livraria Lello...

Beijo


CSD

Lana disse...

Olá Filipe
quem me dera um dia escrever como tu ...
tb sou rata de biblioteca e adoro o cheiro e as promessas ocultas dos livros ...
1 sorriso luminosos, há novo post e até breve.
Lana

filipelamas disse...

Querida Lana,
Muito obrigado pelas tuas palavras, mas quem escreve assim tão bem é a minha companheira de blog rtp! Agradeço-te por ela!
Tenho acompanhado a tua produção na blogosfera e só posso pedir-te que continues a escrever!
Beijos,
Filipe

Anónimo disse...

Love is in the air ....

Serenidade disse...

A Livraria Lello... tantas vezes passei em frente a ela, entrei e maravilhada fiquei com a maravilhosa qrquitectura adornada com o algo que adoro-livros.
Boa sugestão.

Bom fim de semana.

Beijos de luz serena.