quinta-feira, dezembro 21, 2006

O Jurista – entre a Realidade e o Mito (ou o princípio da incerteza de uns tipos esquisitos) - I


O Jurista, Giuseppe Arcimboldo, 1566, Museu Nacional, Estocolmo.

Inauguramos hoje uma nova rubrica que nos irá ocupar vários posts e para a qual estão convidadas as bloggistas residentes e todos os que façam parte da espécie que queremos aqui escalpelizar. Ela é multímoda o suficiente para comportar tratados infindáveis e chatos tal como o nosso objecto de estudo.
Comecemos por uma evidência: o jurista é um bicho estranho (e estamos a ser simpáticos).
Fala uma linguagem própria, procria de modo específico e tem o seu habitat natural.
***

Comecemos hoje, então, pela linguagem, rectior (esta é típica), por uma parte dela. Estamos perante um animal que é perito em debitar muitas palavras e, no final, instado a resumir, é incapaz de o fazer ou, se o faz, saem umas latinadas mutatis mutandis cum grano salis maxime hic et nunc. O sim e o não são palavras proibidas a este ser. Abreviaturas como s.m.o., p. e p., à C.S., CPP, CP, LOFTJ, RLOFTJ, CPTA, o extinto CPEREF (um dos meus predilectos), formam uma teia inextricável de miríades distintivas e sub-distintivas de metastisado estado.
Qual mensagem encriptada, o jurista vive de fórmulas redondas e de pensamentos que desafiam a lógica basilar. Se A deve a B, A pode não ser devedor. Tudo depende do ponto de vista e de um expediente de que se possa – mesmo que só de forma remota correcta – lançar mão.
E claro, as chavetas. Se abríssemos o cérebro de um jurista ele estaria pejado de travessões e chavetas. Tudo tem de ser distinguido até a um ponto quase infinitesimal em que nem mesmo o autor percebe o que há já a destrinçar. O mais certo é que a sub-sub-chaveta seja o mesmo que a sub-sub-chaveta anterior. Mas tal é suficiente para alimentar animadas (dentro do género...) disputas doutrinais em que os ditos “Autores” se digladiam em “revistas da especialidade” com fórmulas sarcástica e pretensamente bem-educadas: “o distinto Mestre não pode ter pretendido chegar a esta conclusão”, “se bem entendemos o que o insigne jurista defende”, “se bem pensamos”, “não querendo trair o pensamento que – ao que julgamos – anima o distinto Autor”.
Os adjectivos são, aqui, fórmulas ocas e em que, v. g., a “douta” p. i., o “douto” despacho ou acórdão em versão Habilus são, muitas vezes, idiotices pegadas e modo já conhecido em juízo de dizer “o burro do advogado que fez a porcaria desta peça” ou “o estúpido do juiz que desencantou esta visão peregrina das coisas”.
***

Apertis brevis
ou brevitatis causa: a consistência axiológico-normativa do que supra se acha vertido em nada responsabiliza, mediata ou imediatamente os administradores do espaço lúdico virtual que aloja o conjunto de caracteres ora sub judice.
Leia-se: não nos responsabilizamos pelas consequências nefastas para a saúde que esta rubrica tenha nos possíveis leitores.

Sob o alto patrocínio de:

National Geographic
Academia Internacional de Antropologia
Canal Panda
Cartoon Network

Floribella
Tide (Que querem? Precisei de detergente lá para casa e o Tide deu mais! Salário de jurista não dá para grandes pruridos "ético-desinfectantes"...)

10 comentários:

Anónimo disse...

Magnifico!!
boa forma de eu começar o dia!!
as coisas que vão por ai ...
1 sorriso luminoso
Lana

rocky disse...

Muito bem: cá está o que nenhum jurista havia ainda tido coragem de dizer num blog! Filipelamas di-lo com propriedade e pleno de graça. Queremos mais!!!!!

Joaninha disse...

Gostei muito! Em primeiro lugar, pelas imagens que são sempre escolhidas a dedo e, em segundo lugar, pela capacidade de olhar a nossa profissão por dentro. Ver as suas entranhas!!
É incrível a imaginação de um jurista, a forma como brilhantemente inventa palavras ou como aceita sem criticar expressões verdadeiramente hilariantes criadas pela figura mítica que é o "legislador", como sejam "os impedimentos impedientes" e afins a "servidão de estilicídio" ou os "vícios redibitórios". Aliás, existe um texto de Pedro Mexia que aborda tudo isso.
Aceito o desafio e vou colocar no meu espaço aquele texto do Mexia.
E, uma vez mais, parabéns pela ousadia!!!

Anónimo disse...

Os trabalhadores da "Opel" da Azambuja também acharam bastante piada ao texto.

Anónimo disse...

Meretíssimo Blogger,

O presente post tem, para mim, valor uniformizador de jurisprudência...
Com a devida vénia, permito-me fazer uma adenda ao Douto post:
em linguagem jurídica não há motivos, há ordens de razões...
Por outro lado, A e B, e salvo melhor opinião, deviam ser deportados para as Ilhas Tuvalu já que são eles que entopem os tribunais nacionais - A celebra um contrato com B, que fica a dever a A, que por sua vez dá uma tareia a B, que, em resposta, mata A...

M. disse...

Obrigada, Filipe, pelas amáveis palavras deixadas no Fotoescrita.
Um feliz Natal e que 2007 traga muita coisa boa para todos nós.
M

Anónimo disse...

Há sempre o advogado que diz«e este juiz pensa que descobriu a pólvora» ou o juiz que diz «as asnáticas alegações do advogado». O último leva pancada; os outros nem pensar. Mas é um facto que a linguagen jurídica é esquisita principalmnente se escrita ou dita por advogados-«in faine»- à moda inglesa , ou vidé, com o maldito acento. Provocatório q.b.

filipelamas disse...

Bom tê-la por cá, caríssima anónima! É um orgulho contar com pessoas dotadas de infinita sabedoria a nível pessoal e profissional! Um excelente 2007!

Anónimo disse...

obrigado

KIK0 disse...

Estava eu à procura do LOFTJ no www.sapo.pt para me preparar para o meu exame de Processo Penal de amanha quando me deparei com o link para este blog. Gostei de ler o post sobre os juristas, tá engraçado. Queria só corrigir, com o devido respeito para com o douto post, uma expressão: onde se lê rectior deve ler-se rectius. A primeira significa "o mais correcto" e é um adjectivo no grau superlativo absoluto. Já rectius significa "mais correcto que" ou "mais correctamente" e está, portanto, no grau comparativo de superioridade. A expressão rectius que muitos juristas usam, significa exactamente que há uma expressão mais correcta que deve ser utilizada em detrimento da primeiramente expressa e não que aquela é a mais correcta de todas. Cumprimentos!