Música: Astor Piazzolla
Letra: Horacio Ferrer
Direcção musical: Rui Massena
Direcção cénica: João Henriques
Produção: Teatro Nacional de São João
Não tendo assistido no Teatro Carlos Alberto, há algum tempo, ao espectáculo «Maria de Buenos Aires», não o deixei fugir, desta vez, no Teatro Nacional de São João. Foi o Tango Nuevo de Piazzolla que me atraiu, já que o ouço, incansavelmente, vezes sem conta, tal é a fascinação que sobre mim exerce.
Esta operita, assim denominada pelos seus autores por não ser possível enquadrá-la, rigorosamente, em algum estilo pré-estabelecido, foi criada por Astor Piazzolla e Horacio Ferrer em 1968, época em que foi alvo de incompreensões e polémicas por parte da ala mais ortodoxa do tango argentino, mas em que também foi entusiasticamente recebida como símbolo da modernização do tango popular. Para a carreira do próprio Piazzola, representou o início de um novo estilo: o tango-canção; para Horacio Ferrer, considerado o principal letrista do Nuevo Tango, foi apenas o início promissor de uma frutuosa colaboração com o amigo de longa data. A música de Piazzolla e as palavras de Ferrer entrelaçam-se, a um tempo, de forma desesperada, sedutora e harmoniosa, formando um conjunto poético que nos sacode, incomoda e conquista. Surpreendentemente, porém, a marca indelével desta operita foi cunhada na minha memória, não por Piazzolla, mas sim por Ferrer, razão pela qual - perdoe-me quem achar maçadora a extensão deste texto - não resisto a transcrever algumas passagens.
A história é a do nascimento e da morte de María, enteada da Vida e de Deus: “La pequeña nació un día que estaba borracho Dios: (…)nacía con un insulto en la voz! (…) De arena y de frío le hicieron los días, tan duros! Y, a espaldas del río, allá donde el río se junta a la nada, con una pregunta bordada en la falda, la Niña María creció en siete días (…) María de Agorería,tendrás dos tangos por cruz.”
Para fugir de um relacionamento amoroso mal sucedido, Maria abandona o bairro onde nasceu e ruma à noite de Buenos Aires, carregando o peso do destino já traçado: o de ouvir para sempre a revolta de um homem rejeitado na voz de todos os homens (“Yo soy María de Buenos Aires, (…) María Tango, María del arrabal, María noche, María pasión fatal, María del amor de Buenos Aires soy yo! (…) Las hembras que me envidiarán, y cada macho a mis pies como un ratón en mi trampa ha de caer.”). «Fuga e Mistério» ilustra, de forma magistral, este momento, em que, tal como Piazzolla exigia, o bandoneón canta e grita. O bandoneón é, aliás, uma figura central (protagoniza até um duelo!), cantando milongas de tristeza e de raiva (“Un bandoneón que mi tristeza tiene escrita, hoy dos temblores me ha mezclado en la garganta: con gusto a Sur, me dió el temblor de Milonguita, y otro -peor- que sabe a Norte y nadie canta!”).
Maria é uma figura simbólica, representativa de todas as Marias de igual condição (“Seré más triste, más descarte, más robada que el tango atróz que nadie ha sido todavía; y a Dios daré, muerta y de trote hacia la nada, el espasmódico temblor de cien Marías”). Surgem-nos, aliás, duas Marías: ambas voluptuosas, a primeira, vestida de branco, a segunda, de negro. O negro representa a sombra de Maria, que, depois de assassinada, deambula sem rumo pela cidade de Buenos Aires, assim recordada: “Así, del íntimo extramuro porteño de tu adiós, atravesando las fronteras sencillas de la muerte, he de traer tu canto oscuro.(…) ya tu voz -maríamente- vendrá con tu memoria, aquí pequeña y una, ahora.(…) Ya sepultado el cuerpo de María, comienza el largo via crucis de La Sombra de María. Deambula, perdida, por Buenos Aires”.
Fatal e diabólica por fora, pura por dentro, é assim Maria: “Allá va la Sombra de María a su otro infierno. Sólo, queda aquí, la vaina rosa de su cuerpo: tiene todo el mal del mundo, en flor, cabal y abierto hasta el final; y sin embargo, el corazón se ha negado a ser peor!”. A existência de Maria é ainda ensombrada por sucessivos abortos, que se sugerem. E, de cada vez, morre um pouco mais: “murió por primera vez; Y en la esquina donde aún tejen las Mamitas con esplín, dos Malenas de relente - que habían muerto muchas veces - le enseñaron a morir. Pero en su sola catamufa, zurdo antojo de un loco mimo sobrehumano, a contrayumba de dos pequeñas explosiones de los ojos, echó dos lágrimas de rimmel por la tumba. María de Buenos Aires lloro por primera vez. (…) - Cubrí tu pecho, María, con un puñado de sal.”
No final, o sacrifício de Maria é comparado ao da Virgem Maria, mãe de Deus (“Tengo atorada tanta ternura que de una sola ternura a Dios puedo parir! (…) Nuestra María de Buenos Aires, triste María de Buenos Aires: de olvido eres entre todas las mujeres.”).
Foi um espectáculo arrebatador pelo intenso diálogo entre a palavra e o som. No entanto, perante a variedade das tonalidades musicais que compõem a carreira de Piazzolla, ficou-me um ligeiro travo de monotonia e de circularidade. Cumpre compreender, porém, que o génio argentino rasgou em 1968 todas as convenções sobre o tango e que a maioria das suas obras-primas são posteriores a esta época. Basta recordar Años de Soledad, Libertango, Adios Noniño, entre muitas, muitas outras. De qualquer modo, pareceu-me identificar ali a semente de um futuro revolucionário para a história da música.
6 comentários:
Ainda não vi este espectáculo que o TCA apresenta pela segunda temporada. Mas, de qualquer forma, fica o testemunho de quem já interpretou Astor Piazzola (Libertango) no Auditório homónimo ao do famoso compositor argentino na fabulosa cidade de Buenos Aires. Buenos Aires é uma cidade magnífica, onde se vê (e aprende) o verdadeiro tango quer no Museu do Tango (o famoso Café Tortoni) como espontaneamente nas ruas del Caminito ou das comerciais como a Calle Florida. Os porteños (naturais de Buenos Aires) são um povo simpático e hospitaleiro. Há ainda o famoso Teatro Colón, palco privilegiado da cidade a quem um dia alguém chamou de Paris da América do Sul. Suponho que a peça María de Buenos Aires dê Bons Ares de cartaz para uma visita no futuro. Recomendo enquanto o nosso € ainda compra lá muita coisa...
Correcção: desta vez é no TNSJ!
O que mais me ficou do espectáculo foi o texto cujas principais passagens rocky tão bem escolheu. A ideia de um Deus bêbado como criação de alguém é, em si - perdoe-se-nos a ignomínia - divinal! Tal como a comparação a Maria. De prostituta a santa a passagem é muito estreita, talvez mais do que o buraco da agulha por onde se pretendia fazer entrar o camelo em comparação com idêntica dificuldade de um rico ávaro.
Retenho frases que me transportaram para a dúvida sobre os nossos juízos, ou melhor, pré-juízos. O TNSJ estava cheio e também eu vou dormir mais porteño com o fabuloso texto que acabo de ler!
Gostei muito do espectáculo, em grande medida por causa do texto! Parece-me que somos unânimes a destacar a sua qualidade. De facto, adorei a poesia que perpassa as palavras que Ferrer emprega para contar esta bela história.
Resta-me subscrever as sábias palavras do post da Rocky e do comentário do filipelamas.
gbn: o teu comentário deixou-me com uma grande vontade de visitar Buenos Aires e o Teatro Colón, onde, se não me engano, estreou Maria de Buenos Aires. Na falta de melhor oportunidade, o espectáculo do TNSJ conseguiu transportar-me, por momentos, para esse ambiente mágico...
Estou procurando como louca a letra de toda a operita, Maria de Buenos Aires. Sou do Brasil/ São Paulo, aficionada em música e posso dizer, sem exagero, que Astor Piazzolla é o maior músico do mundo em todos os tempos. Raro é o dia em que não ouço Piazzolla. Sou artista plástica e astrologa e quando pinto, o faço ao som de Piazzola. Bem, estou escrevendo para saber se você poderia me dizer onde consigo toda a letra da operita.
um grande abraço
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