segunda-feira, novembro 27, 2006

Paris à luz da(s) (suas) história(s)

Num espaço de pouco tempo e pela conjugação de factos forjados pelos caprichos do acaso, fui confrontada com 3 retratos da(s) cidade(s) de Paris. Através de dois filmes no grande ecrã e uma série televisiva, em DVD, (re)vi 3 histórias díspares passadas em épocas muito próximas – de meados do século XVIII a meados do século XIX –, testemunhando 3 reconstituições históricas interessantes, em cenários (quase) coincidentes ou vizinhos da cidade de Paris. E, no entanto, aos meus olhos de espectadora, desfilaram três cidades (muito) distintas.
Mas, como por magia, os ecos amalgamados das três obras encaixaram como 3 peças de um estranho puzzle reconstruído na minha mente. Conhecia o enredo de todas elas – duas, com pormenor, pela leitura dos livros que lhe serviram de base, a outra, razoavelmente, pelo pequeno pecúlio acumulado de conhecimentos da História.
A (cronologicamente) primeira narrativa começa a 17 de Julho de 1738, e apresentou-me uma Paris escura e pestilenta. É a história de Jean-Baptiste Grenouille, perfumista por ofício e inelutável imposição natural, contada no livro de Patrick Süskind, "O Perfume", best-seller, que, apesar da sua enorme fama, apreciei moderadamente e, sobretudo, pelo interessante retrato de época e de cheiros. A aventura alquímica daquele ser sem cheiros mas dotado de um olfacto inusitadamente apurado começa, então, numa cidade nauseabunda. A procura da essência ideal condu-lo a outras paragens e a crimes hediondos. O filme, com a escolha das músicas, o alargamento ritmado de planos e as perspectivas ondeantes das câmaras, conseguiu transmitir-me a (pretendida) sensação de uma voragem olfactiva. A contenção representativa do protagonista (Ben Whishaw) e o credível Giuseppe Baldini (Dustin Hoffman) contribuíram para que as minhas (medianas) expectativas não fossem defraudadas. Julgo, assim, que vale a pena ver este filme, apesar das críticas pouco abonatórias.
Da Paris fétida onde Grenouille decide desaparecer da superfície da terra, em Junho de 1767, depois de constatar a vanidade do desejo de criar uma essência imorredoura, passei para uma outra cidade – uma luxuosa cidade dentro (nos arredores) da cidade de Paris: Versalhes, em 1768.
O gigantismo do edifício do Palácio de Versalhes, o brilho da sua faustosa sala dos espelhos, a vastidão verde dos jardins geométricos monopolizam espacialmente a narrativa. Na verdade, só com uma pequena incursão no interior da Ópera, a cidade de Paris aparece na fotografia.
Os espaços e a sua sumptuosidade assumem um papel principal na história. Dão-nos a medida da solidão e do desenraizamento da outra protagonista: Marie Antoinette. L`Autrichienne, depois de se casar, em 1770, com apenas quinze anos, vê a vida decorrer sob o olhar de todos com uma privacidade minguada, num quotidiano rigorosamente ritualizado, cuja prerrogativa de assistir e participar era concedida a um selecto número de privilegiados.. Kirsten Dunst é esta teenager, feita rainha após a morte de Luís XV, que procura sobreviver ao vazio da sua existência num mundo de hipocrisia.
Apesar das criticas negativas, eu gostei muito do filme. Fica atrás do poético "Lost in translation"? Ou do entusiasmante (arrepiante?) "Virgens Suicidas"? Talvez. Há estagnação criativa? É possível. Eu limitei-me a apreciar o quadro e gostei. É mais uma visão original de Sofia Coppola, in casu sobre factos históricos (vide as extraordinárias imagens da existência pós-oferta do Petit Trianon). E, de qualquer modo, eu já estava precavida depois de ler as palavras de Pedro Mexia, num artigo sobre o filme: "... não se espere exactidão factual num filme que toma a sua heroína como um caso e não como um exemplo". Assim de sobreaviso gostei da (discutida) combinação musical e até do fugaz aparecimento de umas modernas sapatilhas que espreitam entre o calçado de época.
Fica em pano de fundo a vida difícil dos populares, que intuímos pelas necessárias subidas de tributos que vão sendo discutidas. Sentimos eclodir a Révolution. Chegam-nos ecos da conquista da Bastilha. O filme termina, aliás, com a transferência da família real para o Palácio das Tulherias, em Paris, seguindo o clamor dos revolucionários. Dos populares, dos membros do terceiro estado ..., enfim, dos miseráveis.
E são eles que encontro, já em período de Restauração, após a batalha de Waterloo e da retirada de cena de Bonaparte, depois de muitos episódios da demorada revolução, ao rever, agora em DVD, a série que vi originariamente na rtp2, aos domingos, ao fim do dia: Les Misérables.
Gérard Depardieu é um Jean Valjean de corpo inteiro. Encarna na perfeição o degredado, que procura fugir ao destino de criminoso que a Sociedade (e, antes demais a justiça) lhe procura impor depois de um acto (ilícito?) desesperado de furto para matar a fome. Com a sua documentação amarelada de degredado, e não sem antes titubear, volta ao caminho do bem, depois de o bispo Myriel lhe ter comprado a alma com dois candelabros.
John Malkovich é, também, um extraordinário Javert, implacável no cumprimento da sua missão como inspector da polícia. Adepto das teorias lombrosianas e de um determinismo férreo, adopta a máxima de que um criminoso será sempre um criminoso.
O elenco é, aliás, todo muito bom. Uma palavra merecem, entre outros, Christian Clavier, como taberneiro trapaceiro Thénardier, Jérôme Hardelay como simpático endiabrado Gravoche e Charlotte Gainsbourg, como sofrida Fantine
Não sendo totalmente fiel ao livro, é uma série de qualidade. Os episódios essenciais estão lá, a alma das personagens não foi roubada, o espirito da obra está presente. Faz jus ao livro que tanto me maravilhou, apesar do maniqueísmo das personagens que são encarnações típicas e monolíticas do bem do mal, da desonestidade e da rectidão. Et pourtant, marca pelos belos frescos da época e, sobretudo, pela intemporalidade das suas lições e das questões que coloca. A ideia da necessidade da escolha de caminhos e dos valores por que se deve pautar a existência; a constatação paradoxal de que o respeito cego pela lei positiva pode redundar numa justiça formal oca, e, portanto, injusta; a problemática da finalidade prosseguida pelas penas e a (abolida) privação (acessória) de certos direitos ad eternum, criando uma espécie de morte civil.
Na sua simplicidade é uma história que faz pensar. E a série pode ser uma interessante prenda de Natal.
Enfim, apetece-me dizer "Je t`aime Paris". Mas esse filme já saiu de cartaz ... escapou-me!

7 comentários:

Claudia Sousa Dias disse...

Parabéns, rtp!

Está excelente!

Estou curiosa, confesso para ver o primeiro. Os outros dois, só se surgir a oportunidade...!

Beijinhos

CSD

ELA disse...

Bem haja por nos ter dado a conhecer, através das suas palavras, diferentes histórias num mesmo local - Paris. Confesso ter amado o "perfume", julgo até que, na sala de cinema, surgiram os cheiros das imagens que o ecran transmitia aos olhos atentos.

Joaninha disse...

Mas que crítica! Muito bem... Quanto ao Perfume, só li o livro e ainda não tive oportunidade de ver o filme. Do livro, gostei muito e está, provavelmente, num dos meus 10 favoritos.
O Marie Antoinette diverte e não desilude.
Quanto aos Miseráveis, vi a série e li o livro. Adorei ambos. Mas o livro (tirando as descrições das batalhas, para as quais, confesso, tenho pouca paciência...)conquistou-me!

DomingonoMundo disse...

Não gostei de Marie Antoinette, nem cheirei o Perfume, mas também gostei dos Miseráveis, que é sempre um filme ousado dada a importância e a dimensão do livro... E tenho muitas saudades de Paris, pelo que partilho da vontade pela última exclamação!!!

rtp disse...

Muito obrigada, a todos!
Cara CSD, faz bem em ir ver. E já agora, para quando uma crítica sua ao livro? ... A qualquer um dos dois ...! :-)
E, é verdade, ELA! Os cheiros transpuseram o registo (audio)videográfico e ganharam existência na sala de cinema!
Cara Joanhinha, os "Miseráveis" conquistaram-me, até nessas descrições ... das batalhas (a de Waterloo está admirável e a das barricadas de 1848, que levaram à re-implantação da república, e apenas são evocadas, é extraordinária), e, mesmo do interior subterrâneo da cidade de Paris (o metro e os esgotos)!
C`est vrai, domingonomundo! Paris é mesmo encantadora!

filipelamas disse...

Sinceramente, tenho andado a ganhar coragem para comentar este post, tal foi o modo como ele me tocou. Mais confesso que padeço de um síndrome de inveja beningna, dado adorar ter o engenho de o escrever. Apesar de, infelizmente, não conhecer Paris, esta ligação tão densa da rtp abriu-me ainda mais o apetite para conhecer a cidade-luz. Merci pour ça, jeune fille!

rtp disse...

Merci! Je reste sans paroles! :-)