Há alguns meses, depois de assistir à representação da peça "À espera de Godot", no Teatro Nacional S. João, senti que cruzava as portas da bela sala de espectáculos do Porto acompanhada por um redemoinho de palavras. O texto de Samuel Beckett perseguiu-me, então, um par de dias. Precisei de algum tempo e esforço para conseguir despistá-lo e libertar-me da sua influência.
Refeita, assisti, agora, à peça "Começar a acabar" do mesmo autor. E a sensação repetiu-se. A torrente de palavras ficou, de novo, a ecoar, aprisionada na minha mente. O presente post serve, então, para deixar fluir o caudal palavroso.
No ano de centenário do nascimento do Prémio Nobel da Literatura de 1969, é representada pela primeira vez em Portugal, esta peça construída, em 1970, pelo próprio Beckett, a partir de três obras que escrevera depois do fim da segunda guerra mundial. ("Malone está a morrer", "Molloy" e "O inominável"). Trata-se de uma co-produção do Teatro Nacional D. Maria II, do Teatro do Bolhão e d`Os Crónicos. A interpretação está a cargo (e que bem que ele o desempenha!) de João Lagarto. Decorre no auditório da ACE/Teatro do Bolhão, à praça Coronel Pacheco, no Porto, entre 9 e 19 de Novembro.
É um monólogo. Dura pouco mais do que uma hora. O palco encontra-se vazio e mal iluminado por três lâmpadas de filamentos pronunciados. João Lagarto surge-nos andrajoso e poeirento. A peça - um exemplo do teatro do Absurdo, em que Beckett é exímio mestre - é um exercício, em solilóquio, sobre a angústia do fim. E, no entanto, ... ela ilumina o espírito.
Tudo começa com o (prenúncio de) fim. "Acho que em breve vou morrer. Podia morrer hoje mesmo se fizesse um bocadinho de força." – eis a confissão de quem nos surge, em passo arrastado, na penumbra do palco. Um mendigo? Um "mendigo de alma" (na expressão feliz de João Lagarto)? Podia ser Vladimir ou Estragon de "Á espera de Godot". É mais um louco beckettiano ("Todos nascemos loucos. Alguns permanecem assim" como nos diz, na agora citada, famosa peça). Como aos demais, ainda lhe sobra uma réstia de esperança. Admite sobreviver mais alguns meses, até à Ascensão. Mas, a partir daí, o mundo prosseguirá sem ele.
Que mundo? Um mundo próprio com uma lógica diferente. Um mundo de que não se atreve a sair. Um mundo que não muda. ("... nada muda aqui desde que cá estou, mas não me atrevo a concluir que nunca mudará nada").
Para matar o tempo que lhe resta, vai desfiando episódios soltos da sua história. Numa espécie de ladainha circular, vão surgindo as interrogações sobre os enigmas da vida e da morte. Sente que tudo é novo e tudo é repetição. Ao mesmo tempo que se lamenta pelo muito inacabado que recorda na sua, quase finda, existência, deixa escapar o desejo: "Que seja sempre hoje, sem antes nem depois".
Sente-se compelido a falar. Solitário, procura explicar o inexplicável. Não consegue calar-se. O discurso impõe-se-lhe num jorro de palavras que aparecem não se sabe bem de onde e, nem sempre, se percebe bem porquê. Chegam até ele. E ele precisa de todas elas. A sua existência é das palavras. E, as verdadeiramente importantes são tão poucas! Ficamos com a impressão de que, talvez, não tenham sido as que foram ditas. ("Estas coisas que digo, que vou dizer, se puder, já não são, ou ainda não são, ou nunca foram, ou nunca serão, ou, se foram, se são, se forem, não foram aqui, não são aqui, não serão aqui, mas noutro lugar qualquer")
Sente-se compelido a pensar. Desespera. Perde uma ideia. Surge outra. Não sabe se é a mesma. Pois as ideias parecem-lhe todas tão semelhantes, à medida que as vai conhecendo.
A rotina aparece como uma grande enfermidade do tempo. Tal como se encontra em "Á espera de Godot" surge-nos a sentença: "O ar está cheio dos nossos gritos. O hábito é um importante amortecedor".
A crítica ao homem moderno aparece acerada no jogo vivo de palavras em que o progresso é apresentado. E, apesar dele, "o homem encurta e definha ... concorrentemente".
O humor está presente em toda a peça. As gargalhadas são uma constante (aliás, Beckett assim o pretendia). O episódio em que conta como guardava a sua preciosa colecção de 16 pedras é, disso, o expoente máximo.
E, por fim, (mais) uma palavra para o actor. Aliás, João Lagarto é, aqui, mais do que um actor. Perseguiu o texto, traduziu-o, encenou-o e interpretou-o E que interpretação soberba! Soa a música. As palavras são cantadas. O ritmo é modulado. Colocou a si próprio um desafio, que superou enormemente.
Apetece citar Beckett, no final de "O Inominável": "... aqui onde estou, não sei, nunca saberei, no silêncio não se sabe, tenho de continuar, não posso continuar, vou continuar." (Assírio & Alvim, p. 189)
Refeita, assisti, agora, à peça "Começar a acabar" do mesmo autor. E a sensação repetiu-se. A torrente de palavras ficou, de novo, a ecoar, aprisionada na minha mente. O presente post serve, então, para deixar fluir o caudal palavroso.
No ano de centenário do nascimento do Prémio Nobel da Literatura de 1969, é representada pela primeira vez em Portugal, esta peça construída, em 1970, pelo próprio Beckett, a partir de três obras que escrevera depois do fim da segunda guerra mundial. ("Malone está a morrer", "Molloy" e "O inominável"). Trata-se de uma co-produção do Teatro Nacional D. Maria II, do Teatro do Bolhão e d`Os Crónicos. A interpretação está a cargo (e que bem que ele o desempenha!) de João Lagarto. Decorre no auditório da ACE/Teatro do Bolhão, à praça Coronel Pacheco, no Porto, entre 9 e 19 de Novembro.
É um monólogo. Dura pouco mais do que uma hora. O palco encontra-se vazio e mal iluminado por três lâmpadas de filamentos pronunciados. João Lagarto surge-nos andrajoso e poeirento. A peça - um exemplo do teatro do Absurdo, em que Beckett é exímio mestre - é um exercício, em solilóquio, sobre a angústia do fim. E, no entanto, ... ela ilumina o espírito.
Tudo começa com o (prenúncio de) fim. "Acho que em breve vou morrer. Podia morrer hoje mesmo se fizesse um bocadinho de força." – eis a confissão de quem nos surge, em passo arrastado, na penumbra do palco. Um mendigo? Um "mendigo de alma" (na expressão feliz de João Lagarto)? Podia ser Vladimir ou Estragon de "Á espera de Godot". É mais um louco beckettiano ("Todos nascemos loucos. Alguns permanecem assim" como nos diz, na agora citada, famosa peça). Como aos demais, ainda lhe sobra uma réstia de esperança. Admite sobreviver mais alguns meses, até à Ascensão. Mas, a partir daí, o mundo prosseguirá sem ele.
Que mundo? Um mundo próprio com uma lógica diferente. Um mundo de que não se atreve a sair. Um mundo que não muda. ("... nada muda aqui desde que cá estou, mas não me atrevo a concluir que nunca mudará nada").
Para matar o tempo que lhe resta, vai desfiando episódios soltos da sua história. Numa espécie de ladainha circular, vão surgindo as interrogações sobre os enigmas da vida e da morte. Sente que tudo é novo e tudo é repetição. Ao mesmo tempo que se lamenta pelo muito inacabado que recorda na sua, quase finda, existência, deixa escapar o desejo: "Que seja sempre hoje, sem antes nem depois".
Sente-se compelido a falar. Solitário, procura explicar o inexplicável. Não consegue calar-se. O discurso impõe-se-lhe num jorro de palavras que aparecem não se sabe bem de onde e, nem sempre, se percebe bem porquê. Chegam até ele. E ele precisa de todas elas. A sua existência é das palavras. E, as verdadeiramente importantes são tão poucas! Ficamos com a impressão de que, talvez, não tenham sido as que foram ditas. ("Estas coisas que digo, que vou dizer, se puder, já não são, ou ainda não são, ou nunca foram, ou nunca serão, ou, se foram, se são, se forem, não foram aqui, não são aqui, não serão aqui, mas noutro lugar qualquer")
Sente-se compelido a pensar. Desespera. Perde uma ideia. Surge outra. Não sabe se é a mesma. Pois as ideias parecem-lhe todas tão semelhantes, à medida que as vai conhecendo.
A rotina aparece como uma grande enfermidade do tempo. Tal como se encontra em "Á espera de Godot" surge-nos a sentença: "O ar está cheio dos nossos gritos. O hábito é um importante amortecedor".
A crítica ao homem moderno aparece acerada no jogo vivo de palavras em que o progresso é apresentado. E, apesar dele, "o homem encurta e definha ... concorrentemente".
O humor está presente em toda a peça. As gargalhadas são uma constante (aliás, Beckett assim o pretendia). O episódio em que conta como guardava a sua preciosa colecção de 16 pedras é, disso, o expoente máximo.
E, por fim, (mais) uma palavra para o actor. Aliás, João Lagarto é, aqui, mais do que um actor. Perseguiu o texto, traduziu-o, encenou-o e interpretou-o E que interpretação soberba! Soa a música. As palavras são cantadas. O ritmo é modulado. Colocou a si próprio um desafio, que superou enormemente.
Apetece citar Beckett, no final de "O Inominável": "... aqui onde estou, não sei, nunca saberei, no silêncio não se sabe, tenho de continuar, não posso continuar, vou continuar." (Assírio & Alvim, p. 189)
A não perder!
6 comentários:
A interpretação do João Lagarto é, na verdade, impressionante. Fica a sensação de que ele entregou o corpo e a alma a este velho à espera do fim dos seus dias. Não há dúvida, porém, de que o texto tem a riqueza e a densidade necessárias para o actor brilhar e encher o palco escuro de interrogações, angústias, silêncios eloquentes e palavras... muitas palavras desorientadoras. Desconcertou-me particularmente o efeito anestesiante das palavras, dos hábitos e ... das 16 pedrinhas (!)sobre este homem (sobre alguns Homens, sobre mim?), servindo de pretexto para não lutar por uma mudança. A Vida, esta sim, é que tem de pagar tudo o que lhe deve!
Que bela crítica. Beckett é para mim um Autor de uma valia mais do que confirmada. Também eu me rendi ao "À espera de Godot", há uns anos atrás, no Teatro do Campo Alegre.
E fiquei curiosa com este texto!!
Assisti também a esta fabulosa peça. A profundidade dos textos de Beckett impressiona. Pensamentos profundos com um encadeamento perfeito, ideias que parecem soltas mas que se interligam de uma forma quase inexplicável, uma desorientação orientada, brilhante mesmo. Fiquei com vontade de assistir de novo para melhor beber cada palavra, para encontrar novos significados em cada frase, para apreciar melhor a fabulosa interpretação de João Lagarto. Mais, a peça parece totalmente inserida no ambiente do Teatro do Bolhão, que eu não conhecia ainda mas que achei muito acolhedor e intimista. Uma peça não perder. Uma peça a repetir.
Ah...e a história das 16 pedrinhas é mesmo deliciosa! :)
Só para incluir, em inglês, a frase relativa à rotina e ao hábito: "The air is full of our cries. But habit is a great deadener." Não gostei, em especial, da tradução de Lagarto de "deadener" para amortececedor, mas não tinha uma alternativa superior e preferi manter o texto como o ouvi...
Antes de mais - e isto não é um ditote gratuito -, há muito tempo que não lia uma crítica tão bem escrita e que denota empenho em conhecer Beckett. Parabéns, rtp!
A peça é, na verdade, fenomenal. O texto é de uma riqueza que só com várias leituras pode ser bordejada.
João Lagarto enche o palco em que se encontra só. Talvez não só, porque as palavras que debita ferem-nos como lâminas cortantes ou afagam-nos o rosto recordando a infância. Realço o sentido de humor que perpassa o texto e a ideia do "eterno retorno" que nos interpela. Beckett critica-se e critica todos nós por mexermos e deixarmos tudo na mesma. Que melhor mote poderíamos querer para transformar algo?
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