O Príncipe de Maquiavel é, como sabemos, o livro de cabeceira aconselhado a qualquer político.
A antologia de poemas de Bertolt Brecht (Porto: Campo das Letras, 2000) deveria ser o livro que todos nós, administrados, deveríamos ler em suaves tragos ao acordar. Lê-lo ao deitar por certo retiraria a tranquilidade necessária para um sono repousado. Ao iniciar o dia, quando bem digerida, a palavra brechtiana seria mais perigosa que qualquer conspiração terrorista.
Não se ignora que Brecht era ideologicamente comprometido. Apesar de nunca se ter inscrito no Partido Comunista, o homem que nasceu alemão (1898) e morreu austríaco (1956) elabora hinos profundos dirigidos à classe operária («Quem construiu Tebas, a das sete portas?/Nos livros vem o nome dos reis./Mas foram os reis que transportaram as pedras?» – Perguntas de um operário letrado). Entre uma super-estrutura e uma infra-estrutura de medo, desânimo, escravatura e uma ironia contagiante, o Poeta ridiculariza Hitler e todos os ditadores. Não que nisto se encontre uma visão maniqueísta. Ela só o é aparentemente. Recorde-se que Brecht parece sentir aversão intrínseca ao arquétipo de “homem bom”: «Escolhemos um bom paredão e vamos fuzilar-te com/Boas balas atiradas por bons fuzis e enterrar-te com/Uma boa pá debaixo da terra boa» [de que adianta ser bom?] – Algumas perguntas a um «homem bom». A conclusão de que os proletários são bons e os burgueses e latifundiários são maus é uma redutora e inconsequente visão da sua poética.
A ironia e o desdém em relação aos poderes instituídos são por demais evidentes. No poema Sente-se, cortante é o verso em que a idiotice é apresentada como o sumo alimento da classe: «Não há dinheiro que o pague.». Os políticos são satirizados ao ponto de a sua missão ser apresentada como o alfa e o ómega da ventura humana: «E atrever-se-ia a nascer o sol/Sem a autorização do Führer?» [amiúde referido como «o pintor», conhecida que era a vocação de Hitler em dedicar-se a essa carreira. A pintura teria perdido incomensuravelmente menos que a Humanidade…] (Dificuldade de governar). A esta figura, de jeito tão merecido apresentada como o anti-Cristo em Brecht, está reservado um mimo notável: «Se este homem insubstituível ressuscitasse ao oitavo dia [ao sétimo não poderia ser, marcando-se com a certeza da aritmética o que a História já deixava a descoberto] /Não acharia em todo o império uma vaga de porteiro» (A propósito da notícia da doença de um poderoso estadista).
De modo explícito e em tom acusatório puro: «Ou será que/Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira/São coisas que custam a aprender?» (idem). A resposta é dada e surge com uma simplicidade infantil comovente: «Mas não seria mais simples para o governo/Dissolver o povo/E eleger outro?» (A solução) – o uso de mecanismos democráticos invertidos em um jogo que desafia os traços estruturantes da ciência política.
O Autor fala de modo desabrido de um dos possíveis fins – do suicídio tem uma visão que diríamos romanceada, embora a pedagogia que assalta toda a sua obra logo o obrigue a asseverar-nos que: «De qualquer modo/Não se deve dar a impressão/De que se dava/Muita importância a si mesmo» (Epístola sobre o suicídio). Da relatividade da vida (e da morte) dá testemunho seguro ao ditar-nos o seu testamento (cerrado): «Gostaria que nela [pedra tumular] escrito fosse:/Ele deu sugestões: nós/Aceitámo-las./Uma tal inscrição/A todos honraria.» (Dispenso a pedra tumular).
Brecht não faz poemas para o leitor, mas sim com o leitor. Este último é convidado de honra na sua obra, é estrela da primeira companhia da guerra que tão de perto viveu e que o fez transformar-se em cidadão do Velho e do Novo Mundo. Em Sente-se, Brecht apelida o leitor de «idiota», confrontando-o com a sua pequenez («Você é um idiota./Está realmente a escutar-me?/Não há pois dúvida alguma de que me ouve com clareza e distinção?») e com a crueza do auto-conhecimento («E no entanto não é desinteressante para você saber o que você é/E no entanto é uma desvantagem para você não saber o que toda a gente sabe»).
Ele é capaz do escatológico, com uma inesperada ode heróica ao WC (O canto de Orge): «Nesse lugar é permitida a cada um a alegria/De ter por cima a estrela e, por baixo, a porcaria.»; «Lugar de humildade: nele saberás bem/Que não passas de um homem que nada retém».
Adverte-nos para a necessidade de estarmos sempre abertos ao que é novo, a não nos quedarmos pelo imobilismo, até porque a mudança está inscrita na natureza das coisas: «Quem ainda está vivo nunca diga nunca./O que é seguro não é seguro.» (Elogio da dialéctica). Contudo, da modernidade tem o Autor uma visão desconfiada, sancionando concepção bíblica de que nada de novo existe debaixo do sol: «A carne nova come-se com velhos garfos. (…) As novas antenas continuaram a difundir as velhas asneiras. [boutarde à comunicação social?] /A sabedoria continuou a passar de boca em boca.» [um apelo ao historicismo desligado do Volkgeist de que o nacional-socialismo se serviu como sustentáculo de hermenêutica jurídica?]
A visão descomprometidamente comprometida de Brecht fá-lo retornar aos assomos bíblicos: «Porque os vencidos de hoje são os vencedores de amanhã.», revelando o génio da ascese, do sacrifício, do estóico suportar da ignominia: «Pela glória, quem não faria grandes coisas/Mas quem/As faz pelo olvido?» (Elogio do trabalho clandestino).
Dono de uma inigualável riqueza interior, da dor tem a preclara visão de caminho para a redenção e para a mudança: «Para atingir o que é grande há que passar por grandes transformações./E as pequenas transformações são inimigas das grandes transformações./Tenho inimigos. Logo devo ser célebre» (Citação). Cortes abruptos de pensamento são constantes na poética brechtiana.
A inteligência aguda e o modo inquietante como vê de um ângulo nunca visto as realidades estão bem patentes
Devemos terminar. Brecht, neste exacto momento, asseveraria, com um olhar que imaginamos matreiro, sagaz e estupidamente humano: «Criança educada deve saber estar calada.» (O que uma criança tem de gramar).
Docente Universitário
3 comentários:
É, de facto, uma grande frase! Como quase todo o Brecht!
Obrigado pelo texto.
«Primeiro levaram os comunistas, mas eu não me importei, porque não era nada comigo.
Em seguida levaram alguns operários, mas a mim isso não me afectou, porque eu não sou operário.
Depois prenderam os sindicalistas, mas eu não me incomodei, porque nunca fui sindicalista.
Logo a seguir, chegou a vez dos padres, mas como eu não sou religioso, também não liguei.
Agora levaram-me a mim e, quando percebi, já era tarde.»
Bertolt Brecht
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