“Pradel representa a vindicta pública. É o acusador oficial e nada tem de humano. Representa a lei, a balança, é ele quem maneja e tudo fará para que esta se incline para o seu lado. Tem um olhar de abutre, fecha um pouco as pálpebras e olha-me intensamente, com toda a altivez.”
Henri Charrière, Papillon.
“Só então encontrou o olhar inexpressivo de Villefort, esse olhar característico dos magistrados, que não querem que lhes leiam o pensamento e que por isso transformam os olhos num vidro despolido. Aquele olhar revelou-lhe que se encontrava diante da justiça, figura de maneiras sombrias.”
Alexandre Dumas, O Conde de Monte-Cristo.
7 comentários:
Bem adequado às nossas áreas!!
Estava a recordar “Papillon” de Charrière, e deparei-me com esta passagem que tinha assinalado quando o li há algum tempo. E, movida pelo tom da passagem, passei da condenação injusta de Papillon para a condenação injusta de Dantes, e ao folhear o livro de Dumas, encontrei a passagem que transcrevi.
A uni-las, a descrição – em que o olhar do retratado assume protagonismo – de dois magistrados que, no cumprimento do seu ofício, condenam dois inocentes
Depois ainda fui ver como descrevia Hugo o zeloso inspector de polícia que, na prossecução cega dos ditâmes da lei, acaba também por ser o agente de variados actos de injustiça. De entre muitas passagens deixo aqui esta:
“Javert sentia-se naquela ocasião como no Céu. Segundo a intuição confusa da sua necessidade e do seu sucesso, e não porque a si próprio claramente o dissesse, ele, no seu encargo celeste de derribar o mal, personificava a justiça, a luz e a verdade. Por trás dele, e em volta dele, estavam a uma profundidade infinita, a autoridade, a razão, o caso julgado, a consciência legal, a vindicta pública, todas as estrelas; ele é que protegia a ordem, fazia estalar o raio da lei, vingava a sociedade e auxiliava o absoluto; Javert sentia nos olhos o clarão da auréola que lhe circulava a fronte (…)” Victor Hugo, Os Miseráveis, Vol. I, Círculo de Leitores, 1977, p. 386.
É também muito engraçado, no Papillon, como o tribunal funciona como um jogo em que o acusador só tenta forçar as lágrimas do júri, com o juiz a pouco poder fazer. O Papillon parece um objecto nas mãos de um sistema judicial em que ao acusador só interessa manter a fama de "duro" e "inflexível".
Tambem curioso o modo como as citações acabam por abarcar diversos intervenientes do sistema de justiça (o polícia, o acusador, o juiz), parecendo todos nutrir-se de uma mesma seiva eivada de injustiça.
É verdade.
Concordo com ambas as observações, Tiago.
Julgo, aliás, que foi a presença dessa "mesma seiva eivada de injustiça" que me guiou, conduzindo-me de umas personagens para outras.
Eu tenho de fazer uma correcção ao comentário anterior! Falei de um sentimento de injustiça que perpassa ao ver as três personagens. Mas tenho de pôr uma adenda: há uma diferença entre o Javert e as outras duas personagens. É que se quer "Pradel" quer "Villefort" são intrinsecamente maus, ou têm motivações egoísticas enquanto agem, "Javert" é bom. Simplesmente é o braço que executa a lei..
O que levanta o problema da aplicação das leis injustas, havendo demasiado zelo na sua aplicação. Curiosamente, até temos uma expressão para isto. São os "mais papistas que o papa" :)
Concordo que há uma diferença, Tiago! Aliás, foi por essa razão que não inclui o excerto dos Miseráveis no corpo do post. Custou-me misturar Javert com os outros “malfeitores”! É feito de outra matéria. Nele é o escrúpulo obsessivo de aplicação do direito (rectius o cumprimento do seu dever de ofício) que o conduz à injustiça.
Por isso falava no “zeloso inspector de polícia que, na prossecução cega dos ditames da lei, acaba também por ser o agente de variados actos de injustiça”.
Não posso, no entanto, acompanhar as suas palavras quando diz que Javert é bom. Apesar de também não conseguir dizer que é mau.
Javert era cumpridor, ordeiro, obediente, honesto e irrepreensível, sem dúvida. Parece-me acima de tudo que lhe faltava o brilho da humanidade “Para Javert, o supremo ideal não era ser-se humano (…). Era ser-se irrepreensível.” Mais, Javert não acreditava na possibilidade de redenção, de aperfeiçoamento. Um criminoso era para sempre um criminoso, incapaz de recuperação.
É muito interessante, aliás, acompanhar o momento (e a razão que a ele conduz) em que Javert se apercebe que do cumprimento da lei podia resultar a injustiça. As certezas que animavam desaparecem, quando constata que um forçado era capaz de um acto de bondade. “O código fragmentara-se nas suas mãos. (…) Operava-se nele uma autêntica revolução de sentimentos, totalmente distinta das afirmativas legais que até àquela data haviam sido as únicas normas do seu proceder”. Desmorona-se quando percebe que “afinal, podia haver muros erguidos ante o dever”.
Livro quarto da quinta parte dos Miseráveis.
Enviar um comentário