quarta-feira, novembro 01, 2006

Pintado de fresco (VII)


Aviso: Este é o 7.º capítulo de uma novela da vida moderna escrita, para já, a 4 mãos (de futuro, esperamos que a 6) entre mim e a rtp.

O dia acordara chuvoso. O céu ameaçava com um cinzento típico da cidade granítica em que habitava.
Mário levantou-se com a cabeça a latejar do que se passara de véspera e com a sensação de que cometera um dos mais graves erros da sua vida. Depois de um banho retemperador, com a toalha branca em volta de um tronco que já conhecera maior firmeza muscular, assomou-se à janela do apartamento que comprara em resultado da promoção e que dava para as traseiras da Casa da Música. Enfim, pareceu-lhe que aquele pedaço de estrutura ia paulatinamente ganhando raízes naquela zona e se esforçava por condizer com o meio circundante.
Também ele tinha de fazer o mesmo. Aqueceu uma chávena de café feito de véspera e agarrou o telemóvel. Deu com uma chamada não atendida de véspera cujo número desconhecia. Apesar da hora madrugadora, devolveu a chamada.
-Sim, sou Mário Fontes e tinha no telemóvel uma chamada desse número…
-Quem? – respondeu uma voz ensonada – Não sei quem é…
-Sim, mas a senhora terá um nome, por certo… – atirava Mário com o mau-feitio com que por vezes acordava.
-Margarida… – respondera a medo, arrependendo-se de imediato de revelar a sua identidade e cobrindo-se ainda mais com o lençol.
-Margarida … – Mário percorria a sua agenda pessoal memorizada . – De uma vespa… azul?
-Ah, você é que deixou um bilhetinho… É preciso ter lata…
Mário precisava de tudo menos de uma descompostura. Preparado para ser bruto, saiu-lhe:
-Sim, desculpe. Foi um atrevimento da minha parte… Mas a noite passada foi mesmo difícil, como lhe dizia. Olhe, deixe-me melhorar a imagem que deixei…
Margarida levantou-se da cama e o seu coração entrou num ritmo descompassado que a enervava.
-Bem… Isto não é nada normal.
-Sim, tem razão… Mas acredite que a normalidade cansa. Posso convidá-la para um almoço. Há um sítio muito simpático em que podíamos conversar. Nesta aldeia que é o Porto, por certo ainda temos amigos ou interesses profissionais em comum…
-Hoje é difícil…
-Não entre por aí… Margarida, certo? Pelo que vi ontem já é suficientemente crescidinha para tentar esses jogos… - ripostou Mário com uma raiva incontrolada.
Sem contar, a interlocutora sentia-se, agora ela, descomposta pela professora da primária que tão más recordações lhe trazia.
-Sim, Mário, não é? Não sei como é a sua vida, mas eu tenho um horário de trabalho… Se quiser, apareça em frente ao Meridien às 13 em ponto.
-Lá estarei. E, Margarida, não se deixe impressionar pelas aparências…
Ela desligou de imediato o telefone, sentindo os ecos da noite passada.

Bernardo dirigia-se para a “Tempo” cantarolando Armstrong. Sim, o mundo era maravilhoso. Margarida não resistira aos seus encantos depois de tantas investidas. Olhou de soslaio uma loira no carro ao lado e piscou-lhe o olho. Recebeu um olhar de indiferença em troca e lembrou-se que o Don Juan já não se usava.
Chegado à revista onde exercia funções de director de publicidade, a notícia atingira-o como um raio: Madalena fora demitida. Um sururu imenso arrasava a redacção. Especulava-se sobre os acontecimentos da véspera. Alguém sugeria que o presidente do conselho de administração se cansara dela e dos constantes prejuízos que a revista dava. Mais cáustico, um outro colaborador já classificava Madalena como “antiguidade” a ponto de ser trocada pelo Dr. Gustavo.
Apesar da alegria mal disfarçada da redacção, Bernardo temia pela sua posição. Fora a influência da agora “pecadora proscrita” que o conduzira àquele emprego.
Ligou a Madalena. Voltou a fazê-lo. Nada. Apenas o som cavo dos toques e a voz melodicamente irritante da moça do “voice mail”. Onde raio estaria Madalena.

Na sua casa na Foz, Madalena contemplava, por entre os olhos rasos de lágrimas, a fotografia de Mário. Recebera a notícia do seu afastamento há cerca de uma hora, acordando-a de um sono estranhamente tranquilo.
A besta do Gonçalo tratara-a como a uma criada. Começava a sentir na pele o que fizera a Mário. Somente a réstia de orgulho a impedia de lhe ligar. Desejava permanecer imóvel, em roupão, no sofá de sua casa até ao fim dos tempos.

2 comentários:

rtp disse...

É caso para voltar a dizer: "Toquem as trompetas! Soem os badalos dos sinos das aldeias, vilas e cidades do nosso Portugal!". Mais um episódio da novela... tão esperado! Muito bem!
Mas, meu amigo, explique-me um pormenor: como é que quem ligou ao Mário foi a MARGARIDA se o bilhete foi entregue à XANA! Diga-me lá: como? Sei que sou eu que vou ter que dizer como! Já me ocorreram várias vias... todas impossíveis de percorrer. Vamos lá ver!
É um palpite meu mas diria que a Madalena veste Prada! :-)

rocky disse...

Finalmente mais um episódio que veio aplacar a ânsia da espera! Tal como rtp, não posso conter a minha surpresa, mas ainda por outra razão: Bernardo trabalhava com Madalena e Mário?! Não era com Margarida?
As cores com que se pintou de fresco esta novela da vida moderna ficaram mais misteriosas... mas, por isso, mais interessantes.
Prevejo que rtp vá precisar de muito engenho e arte para desatar este nó... míope.