quinta-feira, novembro 23, 2006

PALCO DAS TRETAS - MORGANA

Há temas que perturbam a Humanidade desde sempre e que certamente continuarão a fazê-lo, como é o caso da eterna e universal luta entre o Bem e o Mal. Sempre actual, é esta dicotomia que pinta de cores variadas e, por vezes, indefiníveis, o palco do Auditório Municipal de Vila Nova de Gaia, onde, até ao próximo dia 10 de Dezembro, de quinta-feira a domingo, é representada pelo Teatro Experimental do Porto a peça MORGANA.
Foi Paulo Mira Coelho quem escreveu o texto de MORGANA, baseado em lendas populares originárias de Gales e da Bretanha de língua céltica, contadas e desenvolvidas a partir do século XII em vários países, dando origem a inúmeros livros, de que é exemplo o livro de Marion Zimmer Bradley, As Brumas de Avalon.
As personagens desta história são os já conhecidos Rei Artur, Merlin, Morgana, Gwiniviere, Mabus e Mordred. Artur, herói de emocionantes aventuras, nasceu por influência do feiticeiro Merlin, que o educou para ser um rei corajoso, sensato e justo. Morgana, a sua meia-irmã, é o oposto, representando a inveja e a perversidade. O seu aspecto atraente e as suas motivações suscitam, porém, a nossa compreensão e até alguma simpatia: pretendendo cumprir os seus desígnios de mulher e buscando felicidade e amor, Morgana clama aos céus o nascimento de um filho. No entanto, tendo em vista colocar um emissário no domínio do mundo terreno, apenas Lúcifer está disposto a satisfazer-lhe o desejo, apresentando-lhe a visão do filho, Mordred, que seria gerado pelo seu irmão, Artur. Morgana não chega a compreender que Mordred e Artur formam as cargas negativa e positiva da mesma entidade, pois não sabe que a mesma pessoa tem em potência o Bem e o Mal.
As duas faces do mesmo ser representam os dilemas que a vida coloca aos Homens livres, condenados a escolherem autonomamente o caminho que irão percorrer. Artur não escapa a esta realidade tão humana quando sucumbe às investidas sedutoras da sua maquiavélica irmã. É a prova de que o Bem e o Mal não encontram poiso em personagens unívocas. Todas elas questionam o amor (“O amor só é apanágio dos reis e dos ladrões, mas são estes seres verdadeiramente livres?”), o prazer (“O prazer antecipado é sempre maior do que o obtido”), a pureza da alma (“O brilho espiritual de uma alma desperta e afasta os cinco ladrões e a intempérie!”), a rectidão (“O olhar de um homem à procura de Deus devia ser uma linha recta.”), a lei (“Mesmo tu, rei de Avalon, estás sujeito à lei! Ninguém está mais preso à lei do que aquele que se sente livre!”), o sentido da acção (“Na cama em que te deitares, dela te levantarás!”; “Não há inferno – só consequências dos actos.”) e a responsabilidade (“Sei que não nasci para viver como um homem, mas sim para lutar por memórias futuras.”).
É Ruy de Carvalho quem aparece como cabeça de cartaz de MORGANA. No entanto, apesar da interpretação competente do vetusto mago e conselheiro com o dom de ouvir, não é a estrela que mais cintila em Avalon. Esse lugar pertence a Mónica Garcês, magnífica no papel da indomável e majestosa Morgana, tocante no papel da mulher amargurada e desiludida com Artur, “um homem que navegou em mim sem descoberta nem amor”. De assinalar ainda a estreia em teatro de Ricardo Trêpa (sim, o neto de Manuel de Oliveira), que, apesar da sua já assinalável experiência no cinema (sobretudo em filmes realizados pelo avô), acusa a inexperiência no teatro, apesar de devermos aplaudir o seu primeiro papel como Artur, o rei amargurado e atormentado pelos enigmas da vida.

Vale a pena não perder a oportunidade de ver, mais uma vez, o TEP em Gaia.

2 comentários:

rtp disse...

Sim ... pelo que vejo, é uma oportunidade a não perder. Depois desta crítica fiquei com vontade, não só de ir ver a peça, mas também de pegar nos vários volumes de "As brumas de Avalon" de Marion Zimmer Bradley, que, há já alguns anos, recebi como prenda de aniversário e que nunca me senti tentada a ler. Aliás a história do Rei Artur não me suscitou, até ao momento, qualquer interesse particular. Mas se lá estão retratados "temas que perturbam a Humanidade", desde sempre, "como é o caso da eterna e universal luta entre o Bem e o Mal", não preciso de outro pretexto para aceitar o desafio da leitura da obra e de visionamento da peça.

filipelamas disse...

Com uma apreciação como esta, é impossível resistir a ver a peça. Parabéns, rocky!